Seja bem-vindo!

A estrada da tua felicidade não parte das pessoas e das coisas para chegar a ti; parte sempre de ti em direção aos outros. (Michel Quoist)

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Santidade de Deus








Catequese e Doutrina


Da página 1 à 8 transcrito das primeiras páginas do Livro:
As Maravilhas do Pe. Donizete
Autoria de Dom Dadeus Grings

Da página oito até o final trascrito do Catecismo:
Catecismo da Igreja Católica
Redigido depois do Concílio Vaticano II
Com aprovação do Papa João Paulo II


Coletânea de Nestor de Oliveira Filho
Ano de 2005






Santidade de Deus                                                                                                                                          1 

SANTIDADE DE DEUS


                   “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós,
 e vimos sua glória, a glória que um Filho único recebe de seu Pai,
 cheio de graça e de verdade... Todos nós recebemos de sua plenitude, graça sobre graça” (Jô 1,14-16).

                       Só em Deus o homem é grande. Ou, na expressão de S. Agostinho: “Fizestes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração está irrequieto enquanto não repousar em Vós!”

  Na verdade só Deus é o que é. Foi a definição que Ele deu a Moisés no Monte Horeb: “eu sou quem sou”. Este se tornou o nome oficial de Deus para os judeus o identificarem diante das diversas divindades pagãs: Javé! (cf. Ex. 3,13-15).
  Isaias, envolto pela liturgia celeste, ouviu vozes arcanas a cantar: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do universo. A terra inteira proclama a sua glória” (Is. 6,3). E ali logo nos dá a entender que a santidade é a nota característica de Deus.
  A experiência humana nos leva à descoberta de muitas verdades e nos ajuda na concepção de muitas coisas. Assim formamos conceitos, que podem ser qualificados como sublimes e exprimem perfeição, como: bondade, vida, amor, justiça, misericórdia etc.. chegamos até a aplicar estes conceitos, que são verdadeiras imagens intelectivas nossas, a Deus, ou inversamente, representamos Deus estas imagens. Elas são humanas, frutos de nossa mente e baseadas na nossa experiência. Contém certamente uma expressão de perfeição que intuímos em Deus.
  A santidade porém não pertence à categoria humana. É exclusiva de Deus, enquanto distinto de toda criatura. O Antigo Testamento a apresenta como um abismo intransponível, que torna Deus totalmente inacessível à busca humana.
  Moisés faz a primeira experiência da santidade de Deus ao tentar aproximar-se da sarça ardente. Foi detido nesta sua pretensão:


Santidade de Deus                                                                                                                                           2

 ‘Não te aproximes daqui. Tira as sandálias de teus pés, porque o lugar em te encontras é uma terra santa” (Ex 3,5). A partir da revelação da santidade divina, crer em Deus equivale a santificá-lo; o que é o mesmo que reconhecer que Ele é santo. Em outras palavras, ser santo é ser divino.
  Os profetas de Israel deram mais um passo na revelação da santidade de Deus, calcando seu aspecto moral. Deus não só transcende o que é fisicamente frágil, mas também o que é moralmente imperfeito. Neste sentido o pecado constitui uma profanação do santo  nome de Deus e, conseqüentemente, afasta o homem de Deus e o faz tremer diante da elevação moral e da majestade divinas. Por esta razão, para o acesso à divindade, exige-se, como condição, a purificação.
  Sendo característica divina, a santidade nos apresenta Deus numa majestade inacessível, que incute medo, mas, ao mesmo tempo, numa benignidade e misericórdia, que atrai. Assim, pela santidade, Deus se revela como juízo e como graça; como temor e como amor, que reverberam no coração humano. Por ela o homem toma consciência de sua nudez e impureza (Gen. 3,10) e, ao mesmo tempo, do apelo para a conversão, sentindo um irresistível fascínio para Ele.
  A santidade é tão caracteristicamente divina que, onde aparece algum indício dela, surge espontâneo o reconhecimento da obra de Deus. são correntes as expressões: “só Deus poderia ter feito isto”; ou, vendo uma pessoa nestas condições: “é um homem de Deus”... Ao se dirigir às criaturas, Deus é reconhecido como o santo, que “julga e torna feliz; ajuda e salva”.
  A santidade de Deus aparece pois como uma força que penetra todo o universo. A norma que Ele próprio deixou é: “Sede santos, porque Eu, vosso Deus, sou Santo” (Lev. 11,44). Fazer a vontade de Deus é tornar-se, por imitação, santo como Ele. Mas este “fazer” é mais uma graça que uma decisão humana; é mais um dom de Deus que uma busca do homem.


Santidade de Deus                                                                                                                                           3

  Por isso a liturgia da Missa proclama: “Vós sois Santo e fonte de toda santidade” (II) ou na oração eucarística IV: “a fim de não mais vivermos para nós, mas para Ele, que por nós morreu e ressuscitou, enviou de vós, ó Pai, o Espírito Santo, como primeiro dom aos vossos fiéis para santificar todas as coisas, levando à plenitude a sua obra”. O prefácio dos santos reconhece que nossos méritos, na verdade, são dons de Deus.
  Deus estabelece sua santidade entre os homens através de uma Aliança. A lei e os Ritos do Antigo Testamento tinham por finalidade educar o povo que fora santificado, fazendo com que resplandecesse nele a imagem da santidade divina. Apresenta-se como vocação e como graça: é chamado e é dom. “Ele, o Senhor, é quem santifica seu povo” (Lev. 22,32).
  O Novo Testamento inicia com a proclamação do canto de Maria: “Santo é o seu nome” (Lc. 1,49). Neste momento o nome de Deus é plenamente santificado: “O Santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus” (Lc. 1,35). E a partir dele se irradia a santidade entre os homens: reconhecemos o Filho único, cheio de graça e de verdade. Todos nós recebemos de sua plenitude, graça sobre graça (Jô. 1,16).
  Em Cristo se encontra “a plenitude da divindade”, o que quer dizer: a plenitude da santidade e da graça. Por isso o Pai o ama e Ele ama o Pai por um amor indefectível. Veio para transmitir esta santidade aos homens. Por isso “constituiu a uns apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, pastores, doutores, para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa a construção do corpo de Cristo, até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado do homem feito, a  estatura da maturidade de Cristo” (Ef. 4,11-13).
  Por isso São Paulo não hesita em chamar os cristãos de santos: “Aos fiéis santificados em Jesus Cristo, chamados à santidade” (1 Cor. 16,1). No final da mesma carta aos Coríntios fala da coleta “em benefício dos santos” da comunidade de Jerusalém (cf. 1 Cor. 16,1). Na carta aos Efésios, o apóstolo nos apresenta o grande plano de Deus: “Escolheu-nos em Cristo antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante de seus olhos” (Ef. 1,4).


Santidade de Deus                                                                                                                                           4

Invoca o Espírito de sabedoria “que ilumine os olhos do vosso coração, para que compreendais a que esperança fostes chamados, quão rica e gloriosa é a herança que Ele reserva aos santos, e qual a suprema grandeza de seu poder para conosco, que abraçamos a fé” (Ef. 1,17-19).
  Nesta perspectiva se entende a grandeza e dignidade da vida cristã: “Já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. É nele que todo o edifício, harmonicamente disposto, se levanta até formar um templo santo no Senhor. É nele que também vós outros entrais conjuntamente, pelo Espírito, na estrutura do edifício que se torna a habitação de Deus” (Ef. 2,19-22).
  Paulo não nos deixa dúvidas acerca da vontade de Deus. ele, “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tim. 2,4). E insiste: “Eis uma verdade absolutamente certa e merecedora de fé: Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores” (1 Tim. 1,15). Por isso professamos, no Creio, que “por causa de nós homens e por causa de nossa salvação o Filho de Deus desceu do céu e se fez homem”.

A OPÇÃO FUNDAMENTAL

  O grande dilema humano é a opção entre a terra e o céu, o que significa: escolher entre adorar a terra, concentrando todo o empenho na conquista de valores terrestres, que todos conhecemos muito bem, destacando-se o dinheiro e a riqueza material, ou adorar a Deus, colocando Nele a salvação e reconhecendo-O como valor supremo. Em outras palavras, é preciso escolher entre ser mais amigo da terra, com seu destino e ecossistema fechado, ou ser mais amigo do céu, com sua proposta de amor, de paz, de santidade. Os valores da terra são expressos em termos de domínio, de utilidade, de autonomia, de riqueza material. Os valores do céu se expressam pela santidade, pela receptividade, pela interação, pelo amor, pelo conhecimento da verdade.


Santidade de Deus                                                                                                                                           5

  Mas não se trata apenas de opção. Na base está a ação divina: “O que o dom da vida inicia, o dom da graça completa”. Falamos inclusive em “estado de graça” para exprimir a santidade que se expressa pela vida de fé, esperança e caridade. Esta santidade não se identifica com o que humanamente se poderia julgar como atitudes perfeitas, nem se coloca em proporção com a perfeição humana. Em outras palavras, ser santo não é estar isento de defeitos; nem pode ser considerado mais santo quem tenha menos defeitos.
  A santidade não é pois uma conquista, ou destaque individual, que vise exaltar alguém diante dos outros, como imune de defeitos. Já vimos que a santidade é própria de Deus. Portanto, ser santo é participar de Deus. É deixar-se guiar e formar por Ele.
  Ora, S. João, meditando a ação de Deus no mundo, descobriu que Ele é Amor. Logo, participar de Deus é amar. O próprio Apóstolo amado põe o critério: quem ama é nascido de Deus e conhece a Deus (1 Jo. 4,7). E para certificar-nos de que não exagerou, inverte a perspectiva: quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor (1 Jo. 4,8). Isto equivale a dizer: quem ama é santo, e vice-versa: quem é santo ama. A santidade está, pois, na proporção do amor. Entenda-as bem: do Amor que vem de Deus.
  A santidade está, obviamente, ligada à salvação. Pode-se por isso dizer: quem é santo está salvo e vice-versa: quem está salvo é santo.
  Estar salvo tem algo a ver com o céu. Isto é óbvio quando se diz de quem está no céu. Logo entendemos que é santo. Neste sentido se tem a impressão de que ser santo e estar salvo significa estar no céu.
  Se por céu significamos um “lugar” ou situação para onde vamos após a morte em estado de graça, não conseguimos plenamente traduzir a idéia de salvação. Na verdade, céu indica o encontro com Deus, que pode ser mais ou menos intenso.


Santidade de Deus                                                                                                                                           6

 Ora, encontrar Deus significa amá-lo sobre todas as coisas, reconhece-lo Pai, Salvador e Santificador. Isto pode e deve acontecer já aqui na terra, mesmo que seja na penumbra da fé. Foi exatamente para cá, para nossa vida terrena, que nos é anunciada a mensagem do amor e da misericórdia de Deus.
  Portanto quem verdadeiramente encontrou Deus, por Jesus Cristo e pela força do Espírito Santo, já está salvo e, conseqüentemente, antecipa a realidade do céu aqui na terra. É a felicidade que se faz presente no dia a dia. É a realização plena dos desejos mais profundos. Por isso S. Agostinho pôde exclamar, após esta descoberta: “Tarde, muito tarde te encontrei”. E sentenciava: “Fizestes-nos para Vós, Senhor, e nosso coração está irrequieto enquanto não repousar em Vós”. É que ele se deu conta de que perdera muito tempo, na infelicidade, por ignorar que o céu pode ser vivido aqui na terra, pelo encontro com Deus.
  É claro que este céu não se restringe à vida terrena. Quem crê na eternidade, não só como uma realidade em si, mas principalmente como uma condição pessoal, que lhe diz respeito, e conseqüentemente tem a certeza da ressurreição, sabe que esta felicidade com Deus não se esgota nesta peregrinação terrestre. Não termina com a morte. Antes pelo contrário: é ali que se manifesta, de modo pleno, o que somos. Então, não mais creremos nem esperaremos, mas veremos Deus como Ele é. Ser realmente amigo de Deus é gozar do céu para sempre. Trata-se de bens que jamais serão tirados, nem se quer pela morte. Por isso o cristão, conforme expressão de S. Paulo, é alegre pela esperança. Tem valores que não lhe serão tirados. Nem a traça os corrói, nem o ladrão furta.
  Mas ninguém vive para si. A vida humana é necessariamente convivência. Assim, quem encontrou Deus vive o plano de Deus. Santo é quem ama. E quem ama irradia a santidade de Deus no mundo. Por isso se pode, com muita razão, dizer que o santo – qualquer pessoa santa que encontrarmos neste mundo – já é nosso paraíso. Representa um pouco de céu para os homens. É um sinal concreto do amor de Deus no mundo.


Santidade de Deus                                                                                                                                           7

 Nele e por ele encontramos Deus e por isso tornamo-nos, só com este contato humano, revestidos de fé na santidade, mais felizes. Encontrar um “homem de Deus” confere paz e confiança. Dá a certeza de que o amor e que a santidade de Deus se tornou próxima dos homens.
  Para conseguir esta santidade se empreendem viagens; se fazem peregrinações; se buscam informações. As pessoas se submetem a muitas privações e fazem grandes sacrifícios. Mas, quando chegam ao destino, exclamam: valeu a pena! São como os peregrinos judeus em demanda de Jerusalém, ao contemplá-la, cheios de fé, do alto do Monte das Oliveiras, cantavam: “Louva Jerusalém o Senhor! Louva teu Deus, ó Sião!” (Sl. 147,1). A presença do santo transmite paz e alegria para quem vive neste mundo.
  Se alguém não se convencer com esta irradiação positiva da santidade, poderá inverter a consideração. As trevas costumam ressaltar melhor a luz. Se quem crê em Deus percebe no santo lampejos de felicidade e pode atestar que ele já é nosso paraíso, quem, ao invés, não crê, vê nos outros o inferno. O amor incondicional à terra, sem o Amor que vem de Deus, cria situações penosas para os homens: injustiças, ódios, violência, corrupção, falsidade, uma série de males provocados pelos homens maus. Por isso o homem, sem santidade, inferniza a vida dos outros e a dele próprio. Um inferno que ele sofre e causa, que se perpetua também para além da morte.
  Pelo contraste destas sombras podemos melhor apreciar o fulgor da luz da santidade. Santo é aquele que não deseja nem faz mal a ninguém. É como Jesus, que “passou fazendo o bem” (At. 10,38). Além de serem as pessoas mais felizes do mundo, os santos são também aqueles que tornam mais felizes os homens. Encontraram sua razão de ser, estão de posse do Valor supremo, harmonizaram todas as dimensões de sua vida na perspectiva do Absoluto e único necessário, no qual convergem todas as coisas e todas adquirem sentido.
  Pelo testemunho dos santos pode-se constatar que nem tudo está perdido. Pelo contrário: sente-se que o mundo está salvo.


Santidade de Deus                                                                                                                                           8

 Apesar de todas as vicissitudes humanas, o céu é uma realidade já aqui na terra. Os santos manifestam ao mundo “a misteriosa magia da santidade”. Podem eventualmente assustar e incomodar os pecadores, desnudando sua mesquinhez. Mas, acima de tudo, a santidade atrai e eleva até às alturas de Deus, ao qual então agradecemos “por sua imensa glória”, que transparece nos santos, que se encontram entre nós.


CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA

CAPÍTULO I

CREIO EM DEUS PAI


  Nossa profissão de fé começa com Deus, pois Deus é “o Primeiro e o Último” (Is 44,6), o Começo e o Fim de tudo. O Credo começa com Deus Pai, pois o Pai é a Primeira Pessoa Divina da Santíssima Trindade; nosso Símbolo começa pela criação do céu e da terra, porque a criação é o começo e o fundamento de todas as obras de Deus.

ARTIGO 1

CREIO EM DEUS PAI TODO PODEROSO
CRIADFOR DO CÉU E DA TERRA

PARÁGRAFO 1

CREIO EM DEUS


  “Creio em Deus”: esta primeira afirmação da profissão de fé é também a mais fundamental. O Símbolo inteiro fala de Deus, e se fala também do homem e do mundo, fá-lo pela relação que eles têm com Deus. os artigos do Credo dependem todos do primeiro, da mesma forma que os mandamentos explicitam o primeiro deles. Os demais artigos nos fazem conhecer melhor a Deus tal como se revelou progressivamente aos homens. “Os fiéis fazem primeiro profissão de crer em Deus”.


Santidade de Deus                                                                                                                                           9

I. CREIO EM UM SÓ DEUS

  É com estas palavras que começa o Símbolo niceno-constantinopolitano. A confissão da Unicidade de Deus, que tem a sua raiz na Revelação Divina na Antiga Aliança, é inseparável da confissão da existência de Deus, e igualmente fundamental. Deus é Único: só existe um Deus: “A fé cristã confessa que há Um só Deus, por natureza, por substância e por essência”.
  A Israel, seu eleito, Deus revelou-se como Único: “Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor! Portanto, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6,4-5). Através dos profetas, Deus chama Israel e todas as nações a se voltarem para ele, o Único: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, todos os confins da terra, porque eu sou Deus e não há nenhum outro!... Com efeito, diante de mim se dobrará todo joelho, toda língua há de jurar por mim, dizendo: Só no Senhor há justiça e força”.
  Jesus mesmo confirma que Deus é “o único Senhor” e que é preciso amá-lo de todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito e com todas as forças. Ao mesmo tempo dá a entender que ele mesmo é “o Senhor”. Confessar que “Jesus é o Senhor” é o específico da fé cristã. Isto não contraria à fé em Deus único. Crer no Espírito Santo “que é Senhor e dá a Vida” não introduz nenhuma divisão no Deus único:

  Cremos firmemente e afirmamos simplesmente que há um só verdadeiro Deus eterno, imenso e imutável, incompreensível, todo-poderoso e inefável, Pai, Filho e Espírito Santo: Três Pessoas, mas uma Essência, uma Substância ou Natureza absolutamente simples.


Santidade de Deus                                                                                                                                          10

II. DEUS REVELA SEU NOME


  A seu povo Israel Deus revelou-se dando-lhe a conhecer o seu nome. O nome exprime a essência, a identidade da pessoa e o sentido da sua vida. Deus tem um nome. Ele não é uma força anônima. Desvendar o próprio nome é dar-se a conhecer aos outros; é de certo modo entregar-se a si mesmo tornando-se acessível, capaz de ser conhecido mais intimamente e de ser chamado pessoalmente.
  Deus revelou-se progressivamente a seu povo e com diversos nomes, mas é a revelação do nome divino feita a Moisés na teofania da sarça ardente, pouco antes do Êxodo e da Aliança do Sinai, que ficou sendo a revelação fundamental para a Antiga e a Nova Aliança.

O DEUS VIVO

  Deus chama Moisés do meio de uma sarça que queima sem consumir-se. Deus diz a Moisés: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (Ex 3,6). Deus é o Deus dos pais, Aquele que havia guiado os patriarcas nas suas peregrinações. Ele é o Deus fiel e compassivo que se lembra deles e das suas próprias promessas; vem para libertar os seus descendentes da escravidão. Ele é o Deus que, para além do espaço e do tempo, pode e quer faze-lo, e que colocará sua onipotência em ação a serviço deste projeto.

EU SOU AQUELE QUE É

  Moisés disse a Deus: “Quando eu for aos filhos de Israel e disser: ‘O Deus de vossos pais me enviou até vós’, e me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’, que direi?” Disse Deus a Moisés: “Eu sou Aquele que é”. “Assim dirás aos filhos de Israel: ‘EU SOU me enviou até vós”... Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração (Ex 3,13,15).

  Ao revelar seu nome misterioso de Iahweh, “Eu sou Aquele que â” ou “Eu Sou Aquele que SOU” ou também “Eu sou Quem sou”,


Santidade de Deus                                                                                                                                          11

 Deus declara Quem Ele é e com que nome se deve chamá-lo. Este nome divino é misterioso como Deus é misterioso. Ele é ao mesmo tempo um nome revelado e como a recusa de um nome, e é por isso mesmo que exprime, da melhor forma, a realidade de Deus como ele é, infinitamente acima de tudo o que podemos compreender ou dizer: ele é o “Deus Escondido” (Is 45,15), seu nome é inefável, e ele é o Deus que se faz próximo dos homens.

  Ao revelar seu nome, Deus revela ao mesmo tempo a sua fidelidade, que é de sempre e para sempre, válida tanto para o passado (“Eu sou o Deus de teu pai”, Ex 3,6) como para o futuro: (“Eu estarei contigo” Ex 3,12).Deus que revela seu nome como “Eu Sou” revela-se como o Deus que está sempre presente junto ao seu povo para salvá-lo.
  Diante da presença atraente e misteriosa de Deus, o homem descobre sua pequenez. Diante da sarça ardente, Moisés tira as sandálias e cobre o rosto em face da Santidade Divina. Diante da glória de Deus três vezes santo, Isaias exclama: “Ai de mim, estou perdido! Com efeito, sou um homem de lábios impuros” (Is 6,5). Diante dos sinais divinos que Jesus faz, Pedro exclama: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador” (Lc 5,8). Mas porque Deus é santo, pode perdoar ao homem que se descobre pecador diante dele: “Não executarei o ardor da minha ira... porque sou um Deus e não um homem, eu sou santo no meio de ti” (Os 11,9). O apóstolo João dirá: “Diante dele tranqüilizaremos nosso coração, se nosso coração nos acusa, porque Deus é maior do que nosso coração e conhece todas as coisas” (Jô 3,19-20).

  Por respeito à santidade de Deus, o povo de Israel não pronuncia seu nome. Na leitura da Sagrada Escritura o nome revelado é substituído pelo título divino “Senhor” (“Adonai”, em grego “Kyrios”). É com este título que será aclamada a divindade de Jesus: “Jesus é Senhor”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          12

DEUS DE TERNURA E DE COMPAIXÃO

  Depois do pecado de Israel, que se desviou de Deus para adorar o bezerro de ouro, Deus ouve a intercessão de Moisés e aceita caminhar no meio de um povo infiel, manifestando assim o seu amor. A Moisés que pede para ver sua glória, Deus responde: “Farei passar diante de ti toda minha beleza e diante de ti pronunciarei o nome de Iahweh” (Ex 33,18-19). E o Senhor passa diante de Moisés e proclama: “Iahweh, Iahweh, Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera, e rico em amor e fidelidade” (Ex 34,5-6). Moisés confessa então que o Senhor é um Deus que perdoa.
  O nome divino “Eu sou” ou “Ele é” exprime a fidelidade de Deus que, apesar da infidelidade do pecado dos homens e do castigo que ele merece, “guarda o seu amor a milhares” (Ex 34,7). Deus revela que é “rico em misericórdia” (Ef 2,4), indo até o ponto de dar o seu próprio Filho. Ao dar sua vida para libertar-nos do pecado, Jesus revelará que ele mesmo traz o Nome divino: “Quando tiverdes elevado o Filho do homem, então sabereis que ‘EU SOU’” (Jô 8,28).

SÓ DEUS É

  Ao longo dos séculos a fé de Israel pôde desdobrar e aprofundar as riquezas contidas na revelação do nome divino. Deus é único, fora dele não há deuses. Transcende o mundo e a história. Foi ele quem fez o céu e a terra: “Eles perecem, mas tu permaneces; todos ficam gastos como a roupa... mas tu existes, e teus anos jamais findarão!” Sl 102,27-(28). Nele “não há mudança, nem sombra de variação” (Tg 1,17). Ele é “Aquele que é”, desde sempre e para sempre, e é assim que permanece sempre fiel a si mesmo e às suas promessas.
  A revelação do nome inefável “Eu sou aquele que sou” contém, pois, a verdade de que só Deus é. É neste sentido que já a tradução dos Setenta e, na esteira deles, a Tradição da Igreja, compreenderam o nome divino: Deus é a plenitude do Ser e de toda perfeição, sem origem e sem fim. Ao passo que todas as criaturas receberam dele todo o seu ser e o seu ter, só ele é o seu próprio ser, e é por si mesmo tudo o que é.


Santidade de Deus                                                                                                                                          13

III. DEUS, “AQUELE QUE É”, É VERDADE E AMOR


  Deus, “Aquele que é”, revelou-se a Israel como Aquele que é “rico em amor e em fidelidade” (Ex 34,6). Estes dois termos exprimem de forma condensada as riquezas do nome divino. Em todas as suas obras Deus mostra sua benevolência, bondade, graça, amor, mas também sua confiabilidade, constância, fidelidade, verdade. “Celebro teu nome por teu amor e verdade” (Sl 138,2). Ele é a verdade, pois “Deus é Luz, nele não há trevas” (Jô 1,5), é “Amor”, como ensina o apóstolo João (1Jo 4,8).

DEUS É VERDADE

  “O princípio da tua palavra é a verdade, tuas normas são justiça para sempre” (Sl 119,160). “Sim, Senhor Deus, és tu que és Deus, tuas palavras são verdade” (2Sm 7,28); é por isso que as promessas de Deus sempre se realizam. Deus é a própria Verdade, suas palavras não podem enganar. É por isso que podemos entregar-nos com toda confiança à verdade e à fidelidade da sua palavra em todas as coisas. O começo do pecado e da queda do homem foi uma mentira do tentador que induziu a duvidar da palavra de Deus, da sua benevolência e fidelidade.
  A verdade de Deus é a sua sabedoria que comanda toda a ordem da criação e do governo do mundo. Deus, que sozinho criou o céu e a terra, é o único que pode dar o conhecimento verdadeiro de toda coisa criada na sua relação com ele.
  Deus é verdadeiro também quando se revela: O ensinamento que vem de Deus é “uma doutrina de verdade” (Ml 2,6). Quando enviar seu Filho ao mundo, será “para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37): “Nós sabemos que veio o Filho de Deus e nos deu a inteligência para conhecer- mos o Verdadeiro”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          14

DEUS É AMOR

  Ao longo da sua história, Israel pôde descobrir que Deus tinha uma única razão para revelar-se a ele e para tê-lo escolhido dentre todos os povos para ser dele: seu amor gratuito. E Israel entendeu, graças a seus profetas, que foi também por amor que Deus não cessou de salvá-lo e de perdoar-lhe a sua infidelidade e seus pecados.
  O amor de Deus por Israel é comparado ao amor de um pai por seu filho (Os 11,2). Este amor é mais forte do que o amor de uma mãe pelos seus filhos. Deus ama seu Povo mais do que um esposo ama sua bem-amada, este amor se sobreporá até às piores infidelidades; irá até a mais perigosa doação: “Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único” (Jo 3,16).
  O amor de Deus é “eterno” Is 54,8): “Os montes podem mudar de lugar e as colinas podem abalar-se, mas o meu amor não mudará” (Is 54,10). “Eu te amei com um amor eterno, por isso conservei por ti o amor” (Jr 31,3).
  Mas S. João irá ainda mais longe ao afirmar: “Deus é Amor” (1Jo 4,8.16); o próprio Ser de Deus é Amor. Ao enviar, na plenitude dos tempos, seu Filho único e o Espírito de Amor, Deus revela o seu segredo mais íntimo: Ele mesmo é eternamente intercâmbio de amor: Pai, Filho, e Espírito Santo, e destinou-nos a participar deste intercâmbio.

IV.  O ALCANCE DA FÉ NO DEUS ÚNICO


  Crer em Deus, o Único, é amá-lo com todo o seu ser, tem conseqüências imensas para toda nossa vida:
  Significa conhecer a grandeza e a majestade de Deus: “Deus é grande demais para que o possamos conhecer” (Jó 36,26). É  por isso que Deus deve ser o “primeiro a ser servido”.
  Significa viver em ação de graças: Se Deus é o Único, tudo o que somos e tudo o que possuímos vem dele: “Que é que possuis, que não tenhas recebido?” (1Cor 4,7). “Como retribuirei ao Senhor todo o bem que me fez?” (Sl 116,12).


Santidade de Deus                                                                                                                                          15

  Significa conhecer a unidade e a verdadeira dignidade de todos os homens: Todos eles são feitos “à imagem e à semelhança de Deus” (Gn 1,27).
  Significa usar corretamente das coisas criadas: A fé no Deus Único nos leva a usar de tudo o que não é ele na medida em que isto nos aproxima dele, e a desapegar-nos das coisas na medida em que nos desviam dele:

  Meu Senhor e meu Deus, tirai-me tudo o que me afasta de vós.
  Meu Senhor e meu Deus, dai-me tudo o que me aproxima de vós.
  Meu Senhor e meu Deus, desprendei-me de mim mesmo para doar-me por
  inteiro a vós.

  Significa confiar em Deus em qualquer circunstância, mesmo na adversidade. Uma oração de Sta. Teresa de Jesus exprime-o de maneira admirável:

  Nada te perturbe / nada te assuste
  Tudo passa / Deus não muda
  A paciência tudo alcança / Quem a Deus tem
  Nada lhe falta. / Só Deus basta.

RESUMINDO

  “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o Único Senhor...”(Dt 6,4; Mc 12,29). “É preciso necessariamente que o Ser supremo seja único, isto é, sem igual... Se Deus não for único, não é Deus”.
  a fé em Deus leva-nos a voltar-nos só para Ele como nossa primeira origem e nosso fim último, e a nada preferir a Ele nem substituí-lo por nada.
  Ao revelar-se, Deus permanece Mistério inefável: “Se o compreendesses, ele não seria Deus”.
  O Deus da nossa fé revelou-se como Aquele que é; deu-se a conhecer como “cheio de amor e fidelidade” Ex 34,6). O seu próprio ser é Verdade e Amor.


Santidade de Deus                                                                                                                                          16

PARÁGRAFO 2

O PAI

I. “EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO”


  Os cristãos são batizados “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt. 28,19). Antes disto eles respondem “Creio” à tríplice pergunta que os manda confessar sua fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo: - A fé de todos os  cristãos consiste na trindade -.
  Os cristãos são batizados “em nome” do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e não “nos nomes” destes três, pois só existe um Deus, o Pai todo-poderoso, seu Filho único e o Espírito Santo: a Santíssima Trindade.
  O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. É o mistério de Deus em si mesmo, é, portanto, a fonte de todos os outros mistérios da fé, é a luz que os ilumina. É o ensinamento mais fundamental e essencial na “hierarquia das verdades de fé”. “Toda a história da salvação não é senão a história da via e dos meios pelos quais o Deus verdadeiro e único, Pai, Filho e Espírito Santo, se revela, reconcilia-se consigo e une a si os homens que se afastam do pecado”.
  Neste parágrafo se exporá brevemente de que modo é revelado o mistério da Santíssima Trindade (I), de que maneira a Igreja formulou a doutrina da fé sobre este mistério (II), e, finalmente, de que modo, através das missões divinas do Filho e do Espírito Santo, Deus Pai realiza seu “desígnio benevolente” de criação, de redenção e de santificação (III).

  Os padres da Igreja distinguem entre a “Theologia” e a “Oikonomia”, designando com o primeiro termo o mistério da vida íntima do Deus-Trindade, e com o segundo todas as obras de Deus através das quais ele se revela e comunica a sua vida. É através da “Oikonomia” que nos é revelada a “Theologia”. Mas, inversamente, é a “Theologia” que ilumina toda a “Oikonomia”. As obras de Deus revelam quem ele é em si mesmo; e inversamente, o mistério do seu Ser íntimo ilumina a compreensão de todas as suas obras. Acontece o mesmo, analogicamente, entre as pessoas humanas. A pessoa mostra-se no seu agir, e quanto melhor conhecermos uma pessoa, tanto melhor compreendemos o seu agir.


Santidade de Deus                                                                                                                                          17

  A Trindade é um mistério de fé no sentido estrito, um dos “mistérios escondidos em Deus, que não podem ser conhecidos se não forem revelados do alto”. Sem dúvida Deus deixou vestígios do seu ser trinitário na sua obra de Criação e na sua Revelação ao longo do Antigo Testamento. Mas a intimidade do seu Ser como Santíssima Trindade constitui um mistério inacessível à pura razão e até mesmo à fé de Israel antes da Encarnação do Filho de Deus e da missão do Espírito Santo.

II. A REVELAÇÃO DE DEUS COMO TRINDADE


O PAI REVELADO PELO FILHO

  A invocação de Deus como “Pai” é conhecida em muitas religiões. A divindade é muitas vezes considerada como “pai dos deuses e dos homens”. Em Israel, Deus é chamado de Pai enquanto criador do mundo. Deus é Pai, mais ainda, em razão da Aliança e do dom da Lei a Israel, seu “filho primogênito” (Ex. 4,22). É também chamado de pai do rei de Israel. Muito particularmente ele é “o Pai dos pobres”, do órfão e da viúva que estão sob sua proteção de amor.

  Ao designar a Deus com o nome de “Pai”, a linguagem da fé indica principalmente dois aspectos: que Deus é origem primeira do tudo e autoridade transcendente, e que ao mesmo tempo é bondade e solicitude de amor para todos os seus filhos. Esta ternura paterna de Deus pode também ser expressa pela imagem da maternidade, que indica mais a imanência de Deus, a intimidade entre Deus e a sua criatura. A linguagem da fé inspira-se assim na experiência humana dos pais (genitores), que são de certo modo os primeiros representantes de Deus para o homem. Mas esta experiência humana ensina também que os pais humanos são falíveis e que podem desfigurar o rosto da paternidade e da maternidade. Convém então lembrar que Deus transcende a distinção humana dos sexos. Ele não é nem homem e nem mulher, é Deus. Transcende também à paternidade e a maternidade humanas, embora seja a sua origem e a medida: ninguém é pai como Deus o é.


Santidade de Deus                                                                                                                                          18

  Jesus revelou que Deus é “Pai” num sentido inaudito: não o é somente enquanto Criador, mas é eternamente Pai em relação a seu Filho único, que reciprocamente só é Filho em relação a seu Pai: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt. 11,27).
  É por isso que os apóstolos confessam Jesus como “o Verbo” que “no início estava junto de Deus” e que “é Deus” (Jô. 1,1), como “a imagem do Deus invisível” (Cl. 1,15), “como o resplendor de sua glória e a expressão do seu ser” (Hb 1,3).
  Na esteira deles, seguindo a Tradição apostólica, a igreja, no ano de 325, no primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia, confessou que o Filho é “consubstancial” ao Pai, isto é, um só Deus com Ele. O segundo Concílio Ecumênico, reunido em Constantinopla em 381, conservou esta expressão na sua formulação do Credo de Nicéia e confessou “o Filho Ùnico de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial ao Pai”.

O PAI E O FILHO REVELADOS PELO ESPÍRITO

  Antes da sua Páscoa, Jesus anuncia o envio de um outro “Paráclito” (Defensor), o Espírito Santo. Em ação desde a criação, depois de ter outrora “falado pelos profetas”, ele estará agora junto dos discípulos e neles, afim de ensiná-los e conduzi-los “à verdade inteira” (Jô 16,13). O Espírito Santo é assim revelado como uma outra pessoa divina em relação a Jesus e ao Pai.
  A origem eterna do Espírito revela-se na sua missão temporal. O Espírito Santo é enviado aos apóstolos e à Igreja, tanto pelo Pai, em nome do Filho, como pelo Filho em pessoa, depois que este tiver voltado para junto do Pai. O envio da pessoa do Espírito após a glorificação de Jesus revela em plenitude o mistério da Santíssima Trindade.
  A fé apostólica no tocante ao Espírito foi confessada pelo segundo concílio ecumênico em 381, em Constantinopla:


Santidade de Deus                                                                                                                                          19

 “Cremos no Espírito Santo, que é Senhor e que dá a vida, ele procede do Pai”. Com isto a Igreja reconhece o Pai como “a fonte e a origem de toda a divindade”. Mas a origem eterna do Espírito Santo não deixa de estar vinculada à do Filho: “O Espírito Santo, que é a Terceira Pessoa da Trindade, é Deus, uno e igual ao Pai e ao Filho, da mesma substância e também da mesma natureza... Contudo, não se diz que Ele é somente o Espírito do Pai, mas ao mesmo tempo o Espírito do Pai e do Filho”. O Credo da Igreja, do Concílio da Constantinopla, confessa: “Com o Pai e o Filho ele recebe a mesma adoração e a mesma glória”.
  A tradição latina do Credo confessa que o Espírito “procede do Pai e do Filho(Filioque)”. O Concílio de Florença, em 1438, explicita: “O Espírito Santo tem sua essência e seu ser subsistente ao mesmo tempo de Pai e do Filho e procede eternamente de Ambos como de um só Princípio e por uma única expiração... E uma vez que tudo o que é do Pai, o Pai mesmo o deu ao seu Filho Único ao gerá-lo, excetuado o seu ser de Pai, esta própria processão do Espírito Santo a partir do Filho, ele a tem eternamente de seu Pai que o gerou eternamente”.

  A afirmação do filioque não figurava no símbolo professado em 381 em Constantinopla. Mas com base em uma antiga tradição latina e alexandrina, o papa S. Leão o havia já confessado dogmaticamente em 447, antes que Roma conhecesse e recebesse, em 451, no concílio de Calcedônia, o símbolo de 381. o uso desta fórmula no Credo foi sendo admitido pouco a pouco na liturgia latina (entre ao séculos VIII e XI). Todavia, a introdução do Filioque no Símbolo niceno-constantinopolitano pela liturgia latina constitui, ainda hoje, um ponto de discórdia em relação às Igrejas ortodoxas.
  A tradição oriental põe primeiramente em relevo o caráter de origem primeira do Pai  em relação ao Espírito. Ao confessar o Espírito como “procedente do Pai” (Jô 15,26), ela afirma que o Espírito procede do Pai pelo Filho. A tradição ocidental põe primeiramente em relevo a comunhão consubstancial entre o Pai e o Filho afirmando que o Espírito procede do Pai e do Filho (Filioque). Ela afirma “de forma legítima e racional”, pois a ordem eterna das pessoas divinas na sua comunhão consubstancial implica não só que o Pai seja a origem primeira do Espírito enquanto “princípio sem princípio”, mas também, enquanto Pai do Filho Único, que seja com ele “o único princípio do qual procede o Espírito Santo”. Esta legítima complementaridade, se não for radicalizada, não afeta a identidade da fé na realidade do mesmo mistério confessado.


Santidade de Deus                                                                                                                                          20

III. A SANTÍSSIMA TRINDADE NA DOUTRINA DA FÉ


A FORMAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO

A verdade revelada da Santíssima Trindade esteve desde as origens na raiz da fé viva da Igreja, principalmente através do Batismo. Ela encontra a sua expressão na regra da fé batismal, formulada na pregação, na catequese e na oração da Igreja. Tais formulações encontram-se já nos escritos apostólicos, como na seguinte saudação, retomada na liturgia eucarística: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (2Cor 13,13).
  No decurso dos primeiros séculos, a Igreja procurou formular mais explicitamente a sua fé trinitária, tanto para aprofundar a sua própria compreensão da fé, quanto para defendê-la contra erros que a estavam deformando. Isso foi obra dos Concílios antigos, ajudados pelo trabalho teológico dos Padres da Igreja e apoiados pelo senso da do povo cristão.

  Para a formulação do dogma da Trindade, a Igreja teve de desenvolver uma terminologia própria recorrendo a noções de origem filosófica: “substância”, “pessoa” ou “hipóstase”, “relação” etc. Ao fazer isto, não submeteu a fé a uma sabedoria humana senão que imprimiu um sentido novo, inaudito, a esses termos, chamados a significar a partir daí também um Mistério inefável, que “supera infinitamente tudo o que nós podemos compreender dentro do limite humano”.

A Igreja utiliza o termo “substância” (traduzido também, às vezes, por “essência” ou por “natureza”) para designar o ser divino na sua unidade, e o termo “pessoa” ou “hipóstase” para designar o Pai, o Filho e o Espírito Santo na sua distinção real entre si, e o termo “relação” para designar o fato de a distinção entre eles residir na referência de uns aos outros.


Santidade de Deus                                                                                                                                          21

O DOGMA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

  A Santíssima Trindade é Uma. Não professamos três deuses, mas um só Deus em três pessoas: “a Trindade consubstancial”. As pessoas divinas não dividem entre si a única divindade, mas cada uma delas é Deus por inteiro: “O Pai é aquilo que é o Filho, o Filho é aquilo que é o Pai, o Espírito Santo é aquilo que são o Pai e o Filho, isto é, um só Deus quanto à natureza”. Cada uma das três pessoas é esta realidade, isto é, a substância, a essência ou a natureza divina”.
  As pessoas divinas são realmente distintas entre si. “Deus é único, mas não solitário”. “Pai”, “Filho”, “Espírito Santo” não são simplesmente nomes que designam modalidades do ser divino, pois são realmente distintos entre si: “Aquele que é o Pai não é o Filho, e aquele que é o Filho não é o Pai, nem o Espírito Santo é aquele que é o Pai ou o Filho”. São distintos entre si pelas suas relações de origem: É o Pai que gera, o Filho que é gerado, o Espírito Santo que procede”. A Unida de divina é Trina.
  As pessoas divinas são relativas umas às outras. Por não dividir a unidade divina, a distinção real das pessoas entre si reside unicamente nas relações que as referem umas às outras: “Nos nomes relativos das pessoas, o Pai é referido ao Filho, o Filho ao Pai, o Espírito Santo aos dois; quando se fala destas três pessoas considerando as relações, crê-se todavia em uma só natureza ou substância”. Pois “tudo é uno [neles] lá onde não se encontra a oposição de relação”. “Por causa desta unidade, o Pai está todo inteiro no Filho, todo inteiro no Espírito Santo; o Espírito Santo, todo inteiro no Pai, todo inteiro no Filho”.
  Aos catecúmenos de Constantinopla, S. Gregório Nazianzeno, denominado também, “o Teólogo”, confia o seguinte resumo da fé trinitária:

  Antes de todas as coisas, conservai-me este bom depósito, pelo qual vivo e combato, com o qual quero morrer, que me faz suportar todos os males e desprezar todos os prazeres: refiro-me à profissão de fé no Pai e no Filho e no Espírito Santo. Eu vo-la confio hoje. É por ela que daqui a pouco vou mergulhar-vos na água e vos tirar dela. Eu vo-la dou como companheira e dona de toda a vossa vida. Dou-vos uma só Divindade e Poder, que existe Uma nos Três, e que contém os Três de uma maneira distinta. Divindade sem diferença de substância ou de natureza, sem grau superior que eleve ou grau inferior que rebaixe... A infinita conaturalidade é de três infinitos. Cada um considerado em si mesmo é Deus todo inteiro... Deus os Três considerados juntos. Nem comecei a pensar na Unidade, e a Trindade me banha no seu esplendor. Nem comecei a pensar na Trindade, e a Unidade toma conta de mim.


Santidade de Deus                                                                                                                                          22

IV. AS OBRAS DIVINAS E AS MISSÕES TRINITÁRIAS


  “O lux, beata Trinitas et principalis Unitas – Ó luz, Trindade bendita. Ó primordial Unidade”! Deus é beatitude eterna, vida imortal, luz sem ocaso. Deus é amor: Pai, Filho e Espírito Santo. Livremente Deus quer comunicar a glória da sua vida bem-aventurada. Este é o “desígnio” de benevolência (Ef 1,9) que ele concebeu desde antes da criação do mundo no seu Filho bem-amado, “predestinando-nos à adoção filial neste” (Ef 1,4-5), isto é, “a reproduzir a imagem do seu Filho” (Rm 8,29) graças ao ‘Espírito de adoção filial” (Rm 8,15). Esta decisão prévia é proveniente diretamente do amor trinitário. Ele se desdobra na obra da criação, em toda história da salvação após a queda, nas missões do Filho e do Espírito, prolongadas pela missão da Igreja.
  Toda economia divina é obra comum das três pessoas divinas. Pois da mesma forma que a Trindade não tem senão uma única e mesma operação. “O Pai, o Filho e o Espírito Santo não são três princípios das criaturas, mas um só princípio. Contudo, cada pessoa divina opera a obra comum segundo a sua propriedade pessoal. Assim a Igreja confessa, na linha do Novo Testamento: Um Deus e Pai do qual são todas as coisas, um Senhor Jesus Cristo para quem são todas as coisas, um Espírito Santo em quem são todas as coisas”. São sobretudo as missões divinas da Encarnação do Filho e do dom do Espírito Santo que manifestam as propriedades das pessoas divinas.
  Obra ao mesmo tempo comum e pessoal, toda a Economia divina dá a conhecer tanto a propriedade das pessoas divinas como a sua única natureza. Outrossim, toda a vida cristã é comunhão com cada uma das pessoas divinas, sem de modo algum separá-las. Quem rende glória ao Pai o faz pelo Filho no Espírito Santo; quem segue a Cristo, o faz porque o Pai o atrai e o Espírito o impulsiona.


Santidade de Deus                                                                                                                                          23

  O fim último de toda a Economia divina é a entrada das criaturas na unidade perfeita da Santíssima Trindade. Mas desde já somos chamados a ser habitados pela Santíssima Trindade: “Se alguém me ama – diz o Senhor – guardará a minha palavra, e meu Pai o amará e viremos a ele, e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23):

  Ó meu Deus, Trindade que adoro, ajudai-me a esquecer-me inteiramente para firmar-me em Vós, imóvel e pacífico, como se a minha alma já estivesse na eternidade: que nada consiga perturbar a minha paz nem fazer-me sair de Vós, ó meu Imutável, mas que cada minuto me leve mais longe na profundidade do vosso Mistério! Pacificai a minha alma! Fazei dela o vosso céu, vossa amada morada e o lugar do vosso repouso. Que nela eu nunca vos deixe só, mas que eu esteja aí, toda inteira, completamente vigilante na minha fé, toda adorante, toda entregue à vossa ação criadora.

RESUMINDO

  O Mistério da Santíssima é o mistério central da fé e da vida cristã. Só Deus no-lo pode dar a conhecer, revelando-se como Pai , Filho e Espírito Santo.
  A Encarnação do Filho de Deus revela que Deus é o Pai eterno, e que o Filho é consubstancial ao Pai, isto é, que ele é no Pai e com o Pai o mesmo Deus único.
  A missão do Espírito Santo, enviado pelo Pai em nome do Filho e pelo Filho “de junto do Pai” (Jo 15,26), revela que o Espírito é com eles o mesmo Deus único. “Com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”.
  “O Espírito Santo procede do Pai enquanto fonte primeira e, pela doação eterna deste último ao Filho, do Pai e do Filho em comunhão”.
  Pela graça do Batismo “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, somos chamados a compartilhar da vida da Santíssima Trindade, aqui na terra na obscuridade da fé, e para além da morte, na luz eterna.
  A fé católica é esta: que veneremos o único Deus na Trindade, e a Trindade na unidade, não confundindo as pessoas, nem separando a substância: pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma só é a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, igual a glória, co-eterna a majestade”. Inseparáveis naquilo que são, as pessoas divinas são também inseparáveis naquilo que fazem. Mas na única operação divina cada uma delas manifesta o que lhe é próprio na Trindade, sobretudo nas missões divinas da Encarnação do filho e do dom do espírito Santo.


Santidade de Deus                                                                                                                                          24

PARÁGRAFO 3

O TODO-PODEROSO

  De todos os atributos divinos, só a onipotência de Deus é mencionada no Símbolo: confessá-la é de grande importância para nossa vida. Nós cremos que ela é universal, pois Deus, que criou tudo, governa tudo e pode tudo; é também de amor, pois Deus é nosso Pai; e é misteriosa, pois somente a fé é capaz de discerni-la “pois é na fraqueza que a força manifesta todo seu poder” (2Cor 12,9).

“ELE FAZ TUDO O QUE QUER” (Sl 115,3)

  As Sagradas Escrituras professam reiteradas vezes o poder universal de Deus. ele é chamado “o Poderoso de Jacó” (Gn 49,24; Is 1,24), “”o Senhor dos Exércitos”, “o Forte, o Valente” (Sl 24,8-10). Se Deus é todo-poderoso “no céu e na terra” (Sl 135,6), é porque os fez. Por isso, nada lhe é impossível, e ele dispõe à vontade da sua obra; Ele é o Senhor do universo, cuja ordem estabeleceu, ordem esta que lhe permaneça inteiramente submissa e disponível; ele é o Senhor da história: ele governa os corações e os acontecimentos à vontade. “Teu grande poder está sempre a teu serviço, e quem pode resistir à força do teu braço?” (Sb 11,21).

 “TU TE COMPADECES DE TODOS, PORQUE TUDO PODES” (Sb 11,23)

  Deus é o Pai todo-poderoso. Sua paternidade e seu poder iluminam-se mutuamente. Com efeito, ele mostra a sua onipotência paternal pela maneira como cuida das nossas necessidades, pela adoção filial que nos outorga (“Serei para vós um pai, e sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor todo-poderoso”: 2Cor 6,18), e finalmente pela sua misericórdia infinita, pois mostra o seu poder no mais alto grau perdoando livremente os pecados.


Santidade de Deus                                                                                                                                          25

  A onipotência divina de modo algum é arbitrária. “Em Deus o poder e a essência, a vontade e a inteligência, a sabedoria e a justiça são uma só e mesma coisa, de sorte que nada pode estar no poder divino, que não possa estar na vontade justa de Deus ou na sua inteligência sábia”.

O MISTÉRIO DA APARENTE IMPOTENCIA DE DEUS

  A fé em Deus Pai todo-poderoso pode ser posta à prova pela experiência do mal e do sofrimento. Por vezes Deus pode parecer ausente e incapaz de impedir o mal. Ora, Deus Pai revelou a sua onipotência da maneira mais misteriosa no rebaixamento voluntário e na Ressurreição de seu Filho, pelos quais venceu o mal. Assim, Cristo crucificado é “poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1,24-25). Foi na Ressurreição e na exaltação de Cristo que o Pai “desdobrou o vigor da sua força” e manifestou “que extraordinária grandeza reveste o seu poder para nós os que cremos” (Ef 1,19-22).
  Somente a fé pode aderir aos caminhos misteriosos da onipotência de Deus. Esta fé gloria-se das suas fraquezas a fim de atrair sobre si o poder de Cristo. Desta fé, a Virgem Maria é o modelo supremo, ela que acreditou que “nada é impossível a Deus” (Lc 1,37) e que pôde engrandecer o Senhor. “O Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor, seu nome é Santo” (Lc 1,49).
  “Por isso, nada é mais adequado para consolidar a nossa fé e a nossa esperança do que a convicção profundamente gravada nas nossas almas de que nada é impossível a Deus. Pois tudo o que (o credo) a seguir nos proporá a crer – as maiores coisas, as mais incompreensíveis, bem como as que mais ultrapassam as leis ordinárias da natureza – desde que a nossa razão tenha pelo menos idéia da onipotência divina, ela as admitirá facilmente e sem qualquer hesitação”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          26

RESUMINDO

  Juntamente com Jó, o justo, nós confessamos: “Reconheço que tudo podes e que nenhum dos teus desígnios fica frustrado” (Jó 42,2).
  Fiel ao testemunho da Escritura, a Igreja dirige com freqüência sua prece ao “Deus todo-poderoso e eterno”, crendo firmemente que “nada é impossível a Deus” (Gn 18,14; Lc 1,37; Mt 19,26).
  Deus manifesta a sua onipotência convertendo-nos dos nossos pecados e restabelecendo-nos na sua amizade pela graça - “Ó Deus, que manifestais o vosso poder sobretudo na misericórdia...”.
  Se não cremos que o Amor de Deus é todo-poderoso, como crer que o Pai pôde nos criar, o Filho, remir-nos, o Espírito, santificar-nos?


PARÁGRAFO 4

O CRIADOR

  “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Com essas solenes palavras inicia a Sagrada Escritura. O Símbolo da fé retoma estas palavras confessando Deus Pai todo-poderoso como “o Criador do céu e da terra”, “de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Por isso, falaremos primeiro do Criador, em seguida da sua criação, e finalmente da queda do pecado, do qual Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio resgatar-nos.
  A criação é o fundamento de “todos os desígnios salvíficos de Deus”, “o começo da história da salvação” que culmina em Cristo. Inversamente, o mistério de Cristo é a luz decisiva sobre o mistério da criação; ele revela o fim em vista do qual “no princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1): desde o início, Deus tinha em vista a glória da nova criação em Cristo.

  É por isso que as leituras da Vigília Pascal, celebração da criação nova em Cristo, começam pelo relato da criação; da mesma forma, na liturgia bizantina, o relato da criação constitui sempre a primeira leitura das vigílias das grandes festas do Senhor. Segundo o testemunho dos antigos, a instrução dos catecúmenos para o batismo segue o mesmo caminho.


Santidade de Deus                                                                                                                                          27

I. A CATEQUESE SOBRE A CRIAÇÃO


  A catequese sobre a criação se reveste de uma importância capital. Ela diz respeito aos próprios fundamentos da vida humana e cristã: pois explicita a resposta da fé cristã à pergunta elementar feita pelos homens de todas as épocas: “ De onde viemos?” “Para onde vamos?” “Qual é a nossa origem?” “Qual é a nossa meta?” “Donde vem e para onde vai tudo o que existe?” As duas questões, a da origem e a do fim, são inseparáveis. São decisivas para o sentido e a orientação da nossa vida e do nosso agir.

  A questão das origens do mundo e do homem é objeto de numerosas pesquisas científicas que enriqueceram magnificamente os nossos conhecimentos sobre a idade e as dimensões do cosmo, o devir das formas vivas, o aparecimento do homem. Estas descobertas nos convidam a admirar tanto mais a grandeza do Criador, a render-lhe graças por todas as suas obras e pela inteligência e a sabedoria que dá aos estudiosos e aos pesquisadores. Com Salomão, estes últimos podem dizer: “Ele me deu um conhecimento infalível dos seres para entender a estrutura do mundo, a atividade dos elementos... pois a Sabedoria, artífice do mundo, mo ensinou” (Sb 7, 17-21).
  O grande interesse reservado a essas pesquisas é fortemente estimulado por uma questão de outra ordem, e que ultrapassa o âmbito próprio das ciências naturais. Não se trata somente de saber quando e como surgiu materialmente o cosmo, nem quando o homem apareceu, mas antes, de descobrir qual é o sentido de tal origem: se ela é governada pelo acaso, um destino cego, uma necessidade anônima, ou por um Ser transcendente, inteligente e bom, chamado Deus. E se o mundo provém da sabedoria e da bondade de Deus, por que existe o mal? Donde vem? Quem é o responsável por ele? E haverá como libertar-se dele?
  Desde os inícios, a fé cristã tem-se confrontado com respostas diferentes da sua, no que diz respeito à questão das origens. Assim, encontram-se nas religiões e nas culturas antigas com numerosos mitos acerca das origens. Certos filósofos afirmam que tudo é Deus, que o mundo é Deus, ou que o devir do mundo é o devir de Deus (panteísmo);


Santidade de Deus                                                                                                                                          28

outros afirmam que o mundo ´é uma emanação necessária de Deus, emanação esta que deriva dessa fonte e volta a ela; outros ainda afirmam a existência de dois princípios eternos, o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, em luta permanente entre si (dualismo, maniqueísmo); segundo algumas dessas concepções, o mundo (pelo menos o mundo material) seria mau, produto de uma queda e portanto deve ser rejeitado ou superado (gnose); ouros admitem que o mundo tenha sido feito por Deus, mas à maneira de um relojoeiro que, uma vez terminado o serviço, o teria abandonado a si mesmo (deísmo); outros, finalmente, não aceitam nenhuma origem transcendente do mundo, vendo neste o mero jogo de uma matéria que teria existido sempre (materialismo). Todas essas tentativas dão prova da permanência e da universalidade da questão das origens. Esta busca é própria do homem.

  Sem dúvida, a inteligência humana já pode encontrar uma resposta para a questão das origens. Com efeito, a existência de Deus Criador pode ser conhecida com certeza através das suas obras, graças à luz da razão humana, ainda que este conhecimento seja muitas vezes obscurecido e desfigurado pelo erro. É por isso que a fé vem confirmar e iluminar a razão na compreensão correta desta verdade: “Foi pela fé que compreendemos que os mundos foram organizados por uma palavra de Deus. Por isso é que o mundo visível não tem a sua origem em coisas manifestas” (Hb 11,3).
  A verdade da criação é tão importante para toda a vida humana que Deus, na sua ternura, quis revelar a seu Povo tudo o que é salutar que se conheça a este respeito. Para além do conhecimento natural que todo homem pode ter do Criador, Deus revelou progressivamente a Israel o mistério da criação. Ele, que escolheu os patriarcas, que fez Israel sair do Egito, e que, ao escolher Israel, o criou e o formou, se revela como Aquele a quem pertencem todos os povos da terra, e a terra inteira, como o único que “fez o céu e a terra” (Sl 115,15; 124,8; 134,3).
  Assim, a revelação da criação é inseparável da revelação e da  realização da Aliança de Deus, o Único, com o seu povo. A criação é revelada como sendo o primeiro passo rumo a esta Aliança, como o testemunho primeiro e universal do amor todo-poderoso de Deus. Por isso a verdade da criação se exprime com um vigor crescente na mensagem dos profetas, na oração dos salmos e da liturgia, na reflexão da sabedoria do Povo eleito.


Santidade de Deus                                                                                                                                          29

  Entre todas as palavras da Sagrada Escritura sobre a criação, os três primeiros capítulos do Gênesis ocupam um lugar único. Do ponto de vista literário, esses textos podem ter diversas fontes. Os autores inspirados os puseram no começo da escritura, de sorte que eles exprimem, na sua linguagem solene, as verdades da criação, da origem e do fim desta em Deus, da sua ordem e da sua bondade, da vocação do homem, e finalmente do drama do pecado e da esperança da salvação. Lidas à luz de Cristo, essa unidade da Sagrada Escritura e na Tradição viva da igreja, essas palavras são a fonte principal para a catequese dos Mistérios do “princípio”: criação, queda, promessa da salvação.

II. A CRIAÇAO – OBRA DA SANTÍSSIMA TRINDADE


  “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Três coisas são afirmadas nestas primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno pôs um começo a tudo o que existe fora dele. Só ele é Criador (o verbo “criar” – em hebraico “bara” – sempre tem como sujeito a Deus). Tudo o que existe (expresso pela fórmula “o céu e a terra”) depende daquele que lhe dá o ser.
  “No princípio era o Verbo... e o Verbo era Deus... tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito” (Jo 1,1-3). O Novo Testamento revela que Deus criou tudo através do Verbo Eterno, seu Filho bem amado. Foi nele “ que foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra... tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste” Cl 1,16-17). A fé da Igreja afirma outrossim a ação criadora do Espírito Santo: Ele é o “doador da vida”, “o Espírito Criador”, “a fonte de todo bem”.
  Insinuada no Antigo Testamento, revelada na Nova Aliança, a ação criadora do Filho e do Espírito, inseparavelmente uma com a do Pai, é claramente afirmada pela regra de fé da Igreja: “Só existe um Deus...: ele é o Pai, é Deus, é o Criador, é o autor, é o Ordenador. Ele fez todas as coisas por si mesmo, isto é, pelo seu Verbo e Sabedoria”, “pelo Filho e pelo Espírito”, que são como que suas mãos. A criação é a obra comum da Santíssima Trindade.


Santidade de Deus                                                                                                                                          30

III. “O MUNDO FOI CRIADO PARA A GLÓRIA DE DEUS”


  Eis uma verdade fundamental que a Escritura e a Tradição não cessam de ensinar e de celebrar: “O mundo foi criado para a glória de Deus”. Deus criou todas as coisas, explica S. Boaventura, “não para aumentar a [sua] glória, mas para manifestar a glória e para comunicar a sua glória”. Pois Deus não tem outra razão para criar a não ser  o seu amor e a sua bondade: “Aberta a mão pela chave do amor, as criaturas surgiram”. E o Concilio Vaticano I explica:

  Este único e verdadeiro Deus, por sua bondade e por sua “virtude onipotente’, não para adquirir nova felicidade ou para aumenta-la, mas a fim de manifestar a sua perfeição pelos bens que prodigaliza às criaturas, com vontade plenamente livre, criou simultaneamente no início do tempo ambas as criaturas do nada: a espiritual e a corporal.

  A glória de Deus consiste em que realize esta manifestação e esta comunicação da sua bondade em vista das quais o mundo foi criado. Fazer de nós “filhos adotivos por Jesus Cristo: conforme o beneplácito de sua vontade para louvor à glória da sua graça” (Ef 1,5-6): “Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus: se já a revelação de Deus através da criação proporcionou a vida a todos ao seres que vivem na terra, quanto mais a manifestação do Pai pelo Verbo proporciona a vida àqueles que vêem a Deus”. O fim último da criação, é que Deus, “Criador do universo, tornar-se-á ‘tudo em todas as coisas’ (lCor 15,28), ao mesmo tempo a sua glória e a sua felicidade”.





Santidade de Deus                                                                                                                                          31

IV. O MISTÉRIO DA CRIAÇÃO


DEUS CRIA POR SABEDORIA E POR AMOR

  Cremos que Deus criou o mundo segundo a sua sabedoria. O mundo não é o produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso. Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus que quis fazer as criaturas participarem do seu ser, da sua sabedoria e da sua bondade: “Pois tu criastes todas as coisas; por tua vontade elas não existiam e foram criadas” (Ap 4,11). “Quão numerosas são as tuas obras, Senhor, e todos fizeste com sabedoria!” (Sl 104,24). “O Senhor é bom para todos, compassivo com todas as suas obras” (Sl 145,9).

DEUS CRIA “DO NADA”

  Cremos que Deus não precisa de nada preexistente nem de nenhuma ajuda para criar. A criação também não é uma emanação necessária da substância divina. Deus cria livremente “do nada”:

  Que haveria de extraordinário se Deus tivesse tirado o mundo de uma matéria preexistente? Um artífice humano, quando se lhe dá um material, faz dele tudo o que quiser. Ao passo que o poder de Deus se mostra precisamente quando parte do nada para fazer tudo o que quer.

  A fé na criação a partir “do nada” é atestada na Escritura como uma verdade cheia de promessa e de esperança. Assim, a mãe dos sete filhos os encoraja ao martírio:

  Não sei como é que viestes aparecer no meu seio, nem fui eu que vos dei o espírito e a vida, nem também fui eu que dispus organicamente os elementos de cada um de vós. Por conseguinte, foi o Criador do mundo que formou o homem em seu nascimento e deu origem a todas as coisas, quem vos retribuirá, na sua misericórdia, o espírito e a vida , uma vez que agora fazeis pouco caso de vós mesmos, por amor às leis dele... Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma (2Mc 7,22-23.28).


Santidade de Deus                                                                                                                                          32

  Uma vez que Deus pôde criar do nada, pode, pelo Espírito Santo, dar a vida da alma a pecadores, criando neles um coração puro, e a vida dos corpos aos falecidos, pela ressurreição, ele “que faz viver os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4,17). E uma vez que, pela sua Palavra, pôde fazer resplandecer a luz a partir das trevas, pode também dar a luz da fé àqueles que a desconhecem.

DEUS CRIA UM MUNDO ORDENADO E BOM

  Já que Deus cria com sabedoria, a criação é ordenada: “Tu dispuseste tudo com medida, número e peso” (Sb 11,20). Feita no e através do Verbo eterno, “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), a criação está destinada, dirigida ao homem, imagem de Deus, chamado a uma relação pessoal com Deus. Nossa inteligência, que participa da luz do intelecto divino, pode entender o que Deus nos diz pela sua criação, sem dúvida não sem grande esforço e num espírito de humildade e de respeito diante do Criador e da sua obra. Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: “E Deus viu que isso era bom... muito bom” (Gn 1,4.10.12.18.21.31). Pois a criação é querida por Deus como um dom dirigido ao homem, como uma herança que lhe é destinada e confiada. Repetidas vezes a igreja teve que defender a bondade da criação, inclusive do mundo material.

DEUS TRANSCENDE A CRIAÇÃO E ESTÁ PRESENTE A ELA

  Deus é infinitamente maior do que todas as suas obras: “Sua majestade é mais alta do que os céus” (Sl 8,2), “é incalculável a sua grandeza” (Sl 145,3). Mas por ser o Criador soberano e livre, causa primeira de tudo o que existe, ele está presente no mais íntimo das suas criaturas: “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28). Segundo as palavras de Sto. Agostinho, ele é “maior do que o que há de maior em mim e mais íntimo do que há de mais íntimo em mim”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          33

DEUS MANTÉM E SUSTENTA A CRIAÇÃO

  Com a criação, Deus não abandona a sua criatura a ela mesma. Não somente lhe dá o ser e a existência, mas também a sustenta a todo instante no ser, dá-lhe o dom de agir e a conduz a seu termo. Reconhecer esta dependência completa em relação ao Criador é uma fonte de sabedoria e liberdade, alegria e confiança:

  Sim, tu amas tudo o que criaste, não te aborreces com nada do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito. E como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido? Como conservaria a sua existência, se não a tivesses chamado? Mas a todos perdoas, porque são teus: Senhor, amigo da vida! (Sb 11,24-26).

V. DEUS REALIZA O SEU PROJETO: A DIVINA PROVIDENCIA


  A criação tem a sua bondade e a sua perfeição próprias, mas não saiu completamente acabada das mãos do Criador. Ela é criada “em estado de caminhada” para uma perfeição última a ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou. Chamamos de divina providência as disposições pelas quais Deus conduz a sua criação para esta perfeição:

  Deus conserva e governa com sua providência tudo o que criou, ela se estende “com vigor de um extremo ao outro e governa o universo com suavidade” (Sb 8,1). Pois “tudo está nu e descoberto aos seus olhos” (Hb 4,13), mesmo os atos dependentes da ação livre das criaturas.

  O testemunho da Escritura é unânime: A solicitude da divina providência é concreta e direta, toma cuidado de tudo, desde as mínimas coisas até os grandes acontecimentos do mundo e da história. Com vigor os livros sagrados afirmam a soberania absoluta de Deus no curso dos acontecimentos: “O nosso Deus está no céu e faz tudo o que deseja” (Sl 115,3); e de Cristo se diz: “O que abre e ninguém mais fecha, e fechando, ninguém mais abre” (Ap 3,7). “Muitos são os projetos do coração humano, mas é o desígnio do Senhor que permanece firme” (Pr 19,21).


Santidade de Deus                                                                                                                                          34

  Assim vemos o Espírito Santo, autor principal da Escritura, atribuir muitas vezes ações a Deus, sem mencionar causas segundas. Esta não é uma “maneira de falar” primitiva, mas uma forma profunda de lembrar o primado de Deus e o seu senhorio absoluto sobre a história e o mundo e de assim educar para a confiança nele. A oração dos Salmos é a grande escola desta confiança.

  Jesus pede uma entrega filial à providência do Pai Celeste que cuida das mínimas necessidades dos seus filhos: “Por isso, não andeis preocupados, dizendo: Que iremos comer? Ou, que iremos beber?... Vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade de todas essas coisas. Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,31-33).

A PROVIDÊNCIA E AS CAUSAS SEGUNDAS

  Deus é o Mestre soberano dos seus desígnios. Mas para a realização dos mesmos, serve-se também do concurso das criaturas. Isto não é um sinal de fraqueza, mas de grandeza e da bondade de Deus todo-poderoso. Pois Deus não somente dá às suas criaturas o existir, mas também a dignidade de agirem elas mesmas, de serem causas e princípios umas das outras e de assim cooperarem no cumprimento do seu desígnio.
  Aos homens, Deus concede até participar livremente da sua providência, confiando-lhes a responsabilidade de “submeter” a terra e de domina-la. Deus concede assim aos homens serem causas inteligentes e livres para completar a obra da Criação, aperfeiçoar-lhe a harmonia para o bem deles e dos seus próximos. Cooperadores muitas vezes inconscientes da vontade divina, os homens podem entrar deliberadamente no plano divino, pelas suas ações, pelas suas orações, mas também pelos seus sofrimentos. Tornam-se então plenamente “cooperadores de Deus” (1Cr 3,9; 1Ts 3,2) e do seu Reino.
  Eis uma verdade inseparável da fé em Deus Criador: Deus age em todo o agir das suas criaturas. E é a causa primeira que opera nas causas segundas e através delas: “Pois é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade” (Fl 2,13).


Santidade de Deus                                                                                                                                         35

 Longe de diminuir a dignidade da criatura, esta verdade a realça. Tirada do nada pelo poder, sabedoria e bondade de Deus, a criatura não pode nada se for cortada da sua origem, pois “a criatura sem o Criador se esvai”; muito menos pode atingir o seu fim último sem a ajuda da graça.

A PROVIDÊNCIA E O ESCÂNDALO DO MAL

  Se Deus Pai todo-poderoso, Criador do mundo ordenado e bom, cuida de todas as suas criaturas, por que então o mal existe? Para esta pergunta tão premente quão inevitável, tão dolorosa quanto misteriosa, não há uma resposta rápida. É o conjunto da fé cristã que constitui a resposta a esta pergunta: a bondade da criação, o drama do pecado, o amor paciente de Deus que se antecipa ao homem pelas suas Alianças, pela Encarnação redentora de seu Filho, pelo dom do Espírito, pelo congraçamento da Igreja, pela força dos sacramentos, pelo chamado a uma vida bem-aventurada à qual as criaturas livres são convidadas antecipadamente a assentir, mas da qual podem, por um terrível mistério, abrir mão também antecipadamente. Não há nenhum elemento da mensagem cristã que não seja, por uma parte, uma resposta à questão do mal.
  Mas por que Deus não criou um mundo tão perfeito que nele não possa existir mal algum? Segundo o seu poder infinito, Deus sempre poderia criar algo de melhor. Todavia, na sua sabedoria e bondade infinitas, Deus quis livremente criar um mundo “em estado de caminhada” para a sua perfeição última. Este devir comporta, no desígnio de Deus, juntamente com o aparecimento de determinados seres, também o desaparecimento de outros, juntamente com o mais perfeito também o menos imperfeito, juntamente com as construções da natureza também as destruições. Juntamente com o bem físico existe, portanto, o mal físico, enquanto a criação não houver atingido a sua perfeição.
  Os anjos e os homens, criaturas inteligentes e livres, devem caminhar para o seu destino último por opção livre e amor preferencial. Podem, no entanto, desviar-se. E, de fato, pecaram.


Santidade de Deus                                                                                                                                          36

 Foi assim que o mal moral entrou no mundo, incomensuravelmente mais grave do que o mal físico. Deus não é de modo algum, nem direta nem indiretamente, a causa do mal moral. Todavia permite-o, respeitando a liberdade da sua criatura e, misteriosamente, sabe auferir dele o bem:

  Pois o Deus todo-poderoso..., por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir nas suas obras se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar o bem do próprio mal.

  Assim, com o passar do tempo, pode-se descobrir que Deus, na sua providência todo-poderosa, pode extrair um bem das conseqüências e um mal, mesmo moral, causado pelas suas criaturas: “Não fostes vós, diz José a seus irmãos, que me enviastes para cá, foi Deus; ... o mal que tínheis a intenção de fazer-me, o desígnio de Deus o mudou em bem a fim de ... salvar a vida de um povo numeroso” (Gn 45,8; 50,20). Do maior mal moral jamais cometido, a saber, a rejeição e o homicídio do Filho de Deus, causado pelo pecado em todos os homens, Deus, pela superabundância da sua graça, tirou o maior dos bens: a glorificação de Cristo e a nossa Redenção. Com isso, porém, o mal não se converte em um bem.
  “Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam” (Rm 8,28). O testemunho dos santos não cessa de confirmar esta verdade:

  Assim, Sta. Catarina de Sena diz “àqueles que se escandalizam e se revoltam com o que lhes acontece”: “Tudo procede do amor, tudo está ordenado à salvação do homem, Deus não faz nada que não seja para esta finalidade”.
  E Sto. Tomás More, pouco antes de seu martírio, consola sua filha: “Não pode acontecer nada que Deus não tenha querido. Ora, tudo o que ele quer, por pior que possa parecer-nos, é o que há de melhor para nós”.
  E Lady Julian de Norwich: “Aprendi, portanto, pela graça de Deus, que era preciso apegar-me com firmeza à fé, e crer com não menor firmeza que todas as coisas irão bem...”. ‘Tu mesma verás que qualquer tipo de circunstância servirá para o bem’ ”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          37

  Cremos firmemente que Deus é o Senhor do mundo e da história. Mas os caminhos da sua providência muitas vezes nos são desconhecidos. Só no final, quando acabar o nosso conhecimento parcial, quando virmos Deus “face a face” (1Cor 13,12), teremos pleno conhecimento dos caminhos pelos quais, mesmo através dos dramas do mal e do pecado, Deus terá conduzido a sua criação até o descanso desse Sábado definitivo, em vista do qual criou o céu e a terra.

RESUMINDO

  Na  criação do mundo e dos homens, Deus colocou o primeiro e universal testemunho do seu amor todo-poderoso e da sua sabedoria, o primeiro anúncio do seu “desígnio benevolente”, o qual encontra sua meta na nova criação em Cristo.
  Embora a obra da criação seja particularmente atribuída ao Pai, é igualmente verdade de fé que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são o único e indivisível princípio da criação.
Só Deus criou o universo, livremente, diretamente, sem nenhuma ajuda.
  Nenhuma criatura tem o poder infinito que é necessário para “criar” no sentido próprio da palavra, isto é, produzir e dar o ser àquilo que não o tinha de modo algum (chamar à existência).
  Deus criou o mundo para manifestar e para comunicar a sua glória. Que as suas criaturas participem da sua verdade, da sua bondade e da sua beleza, é a glória para a qual Deus as criou.
  Deus, que criou o universo, o mantém na existência pelo seu Verbo, “este Filho que sustenta o universo com o poder de sua palavra” (Hb 1,3) e pelo seu Espírito Criador que dá a vida. A Divina Providência são as disposições pelas quais Deus conduz com sabedoria e amor todas as criaturas até ao seu fim último.
  Cristo convida-nos à entrega filial à providência de nosso Pai celeste, e o apóstolo S. Pedro lembra: “Lançai sobre ele toda a vossa preocupação, porque é ele que cuida de vós”.
  A Providência divina age também através da ação das criaturas. Aos seres humanos Deus concede cooperar livremente para os seus desígnios.
  A permissão divina do mal físico e do mal moral é um mistério que Deus ilumina pelo seu Filho, Jesus Cristo, morto e ressuscitado para vencer o mal. A fé nos dá a certeza de que Deus não permitiria o mal se do próprio mal não tirasse o bem, por caminhos que só conheceremos plenamente na vida eterna.


Santidade de Deus                                                                                                                                          38

PARÁGRAFO 5

O CÉU E A TERRA

  O Símbolo dos Apóstolos professa que Deus é ‘o Criador do céu e da terra”, e o Símbolo niceno-constantinopolitano explicita:”... do universo visível e invisível”.
  Na Sagrada Escritura, a expressão “céu e terra” significa: tudo aquilo que existe, a criação inteira. Indica também o nexo, no interior da criação, que ao mesmo tempo une e distingue céu e terra: “A terra é o mundo dos homens; “O céu” ou “os céus” pode designar o firmamento, mas também o “lugar” próprio de Deus: “nosso Pai nos céus” (Mt 5,16) e, por conseguinte, também o “céu” que é a glória escatológica. Finalmente, a palavra “céu” indica o “lugar” das criaturas espirituais – os anjos – cercam a Deus.
  A profissão de fé do IV Concílio de Latrão afirma que Deus “criou conjuntamente, do nada, desde o início do tempo, ambas as criaturas, a espiritual e a corporal, isto é, os anjos e o mundo terrestre; em seguida, a criatura humana que tem algo de ambas, por compor-se de espírito e de corpo”.

I. OS ANJOS


A EXISTÊNCIA DOS ANJOS – UMA VERDADE DE FÉ

  A existência dos seres espirituais, não-corporais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente de anjos, é uma verdade de fé. O testemunho da Escritura a respeito é tão claro quanto a unanimidade da tradição.

QUEM SÕ OS ANJOS?

  Sto. Agostinho diz a respeito deles: “Anjo (mensageiro) é designação de encargo, não de natureza. Se perguntares pela designação da natureza, é um espírito; se perguntares pelo encargo, é um anjo: é espírito por aquilo que é, enquanto é anjo, por aquilo que faz.


Santidade de Deus                                                                                                                                          39

 Por todo o seu ser, os anjos são servidores e mensageiros de Deus. porque contemplam “constantemente a face de meu Pai que está nos céus” (Mt 18,10), são poderosos executores da sua palavra” (Sl 103,20)
  Enquanto criaturas puramente espirituais, são dotados de inteligência e de vontade: são criaturas pessoais e imortais. Superam em perfeição todas as criaturas visível. Disto dá testemunho o fulgor de sua glória.

CRISTO “COM TODOS OS SEUS ANJOS”

  Cristo é o centro do mundo angélico. São os seus anjos: “Quando o Filho do homem vier na sua glória com todos os seus anjos...” (Mt 25,31). São seus porque criados por e para ele: “Pois foi nele que foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Dominações, Principados, Potestades; tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1,16). São seus, mais ainda, porque ele os fez mensageiros do seu projeto de salvação. “Porventura, não são todos eles espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação?” (Hb 1,14).
  Eles aí estão, desde a criação, e ao longo de toda a História da Salvação, anunciando de longe ou de perto esta salvação, e servindo ao desígnio divino da sua realização: fecham o paraíso terrestre, protegem Lot, salvam Agar e seu filho, seguram a mão de Abraão, a lei é comunicada por ministério deles, conduzem o povo de Deus, anunciam nascimentos e vocações, assistem os profetas, para citarmos apenas alguns exemplos. Finalmente, é o anjo Gabriel que anuncia o nascimento do Precursor e o do próprio Jesus.
  Desde a Encarnação até a Ascensão, a vida do Verbo Encarnado é cercada da adoração e do serviço dos anjos. Quando Deus “introduziu o Primogênito no mundo, diz: ‘Adorem-no todos os anjos de Deus’” (Hb 1,6). O canto de louvor deles ao nascimento de Cristo não cessou de ressoar no louvor da Igreja: “Glória a Deus...” (Lc 2,14).


Santidade de Deus                                                                                                                                         40

 Protegem a infância de Jesus, servem a Jesus no deserto, reconfortam-no na agonia, embora tivesse podido ser salvo por eles da mão dos inimigos, como outrora Israel. São ainda os anjos que “evangelizam” (Lc 2,10), anunciando a Boa Nova da Encarnação e da Ressurreição de Cristo. Estarão presentes no retorno de Cristo, que eles anunciam, a serviço do juízo que o próprio Cristo pronunciará.

OS ANJOS NA VIDA DA IGREJA

  Do mesmo modo, a vida da Igreja se beneficia da ajuda misteriosa e poderosa dos anjos.
  Na sua Liturgia, a Igreja se associa aos anjos para adorar o Deus três vezes Santo; ela invoca a sua assistência (assim no – “Nós vos suplicamos...” do Cânon Romano ou no – “Para o Paraíso te levem os anjos”, da Liturgia dos defuntos, ou ainda no – “hino querubínico” da Liturgia bizantina), festa mais particularmente a memória de certos anjos (S. Miguel, S. Gabriel, S. Rafael, os anjos da guarda).
  Desde a infância até a morte, a vida humana é cercada pela sua proteção e pela sua intercessão. “Cada fiel é ladeado por um anjo como protetor e pastor para conduzi-lo à vida”. Ainda aqui na terra, a vida cristã participa na fé da sociedade bem-aventurada dos anjos e dos homens, unidos em Deus.

II. O MUNDO VISÍVEL


  Foi Deus mesmo que criou o mundo visível em toda a sua riqueza, diversidade e ordem. A Escritura apresenta a obra do Criador simbolicamente como uma seqüência de seis dias “de trabalho” divino que terminam com o “descanso” do sétimo dia. O texto sagrado ensina, a respeito da criação, verdades reveladas por Deus para a nossa salvação que permitem “reconhecer a natureza profunda da criação, seu valor e sua finalidade, que é a glória de Deus”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          41

  Não existe nada que não deva sua existência a Deus criador. O mundo começou quando foi tirado do nada pela Palavra de Deus; todos os seres existentes, toda a natureza, toda a história humana têm as suas raízes neste acontecimento primordial: é a própria gênese pela qual o mundo foi constituído, e o tempo começou.
  Cada criatura possui sua bondade e sua perfeição próprias. Para cada uma das obras dos “seis dias” se diz: “E Deus viu que isto era bom”. Pela própria condição da criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordens específicas”. As diferentes criaturas, queridas no seu próprio ser, refletem, cada uma a seu modo, um raio de sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura para evitar um uso desordenado das coisas, que menospreze o Criador e acarrete conseqüências nefastas para os homens e seu meio ambiente.
  A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a pequena flor, a águia e o pardal: as inúmeras diversidades e desigualdades significam que nenhuma criatura se basta a si mesma, que só existem em dependência recíproca, para se completarem mutuamente, a serviço umas das outras.
  A beleza do universo: A ordem e a harmonia do mundo criado resultam da diversidade dos seres e das relações que existem entre eles. O homem as descobrem progressivamente como leis da natureza. Elas despertam a admiração dos sábios. A beleza da criação reflete a infinita beleza do Criador. Ela deve inspirar o respeito e a submissão da inteligência do homem e da sua vontade.
  A hierarquia das criaturas é expressa pela ordem dos “seis dias”, que vai do menos perfeito ao mais perfeito. Deus ama todas as suas criaturas, cuida de cada uma, até mesmo dos pássaros. Apesar disso, Jesus diz: “Vós valeis mais do que muitos pardais”  (Lc 12,6-7), ou ainda: “Um homem vale muito mais do que uma ovelha” (Mt 12,12).


Santidade de Deus                                                                                                                                          42

  O homem é píncaro da obra da criação. A narração bíblica exprime isto distinguindo nitidamente a criação do homem da das outras criaturas.
  Existe uma solidariedade entre todas as criaturas pelo fato de terem todas o mesmo Criador, e de todas estarem ordenadas à sua glória:

   Louvado sejas, meu Senhor,
   Com todas as tuas criaturas,
   Especialmente o senhor irmão Sol,
   Que clareia o dia e com tua luz nos alumia.
   Louvado sejas, meu Senhor,
   Pela irmã Água.
   Que é muito útil e humilde
   E preciosa e casta...
   Louvado sejas, meu Senhor,
   Por nossa irmã, a mãe terra,
   Que nos sustenta e governa,
   E produz frutos diversos
   E coloridas flores e ervas.
   Louvai e bendizei a meu Senhor,
   E dai-lhe graças,
   E servi-o com grande humildade.

  O Sábado – fim da obra dos “seis dias”. O texto sagrado diz que “Deus concluiu no sétimo dia a obra que tinha feito”, e assim “o céu e a terra foram terminados”, e no sétimo dia Deus “descansou”, e santificou e abençoou este dia (Gn 2,1-3). Essas palavras inspiradas são ricas de ensinamentos salutares:

   Na criação Deus depositou um fundamento de leis que permanecem estáveis, nos quais o crente poderá apoiar-se com confiança, e que para ele serão o sinal e a garantia da fidelidade inabalável da Aliança de Deus. Por sua parte, o homem deverá ficar fiel a este fundamento e respeitar as leis que o Criador inscreveu nele.
   A criação está em função do Sábado e portanto do culto e da adoração de Deus. O culto está inscrito na ordem da criação. “Nada se anteponha à obra de Deus”, diz a regra de S. Bento, indicando assim a ordem correta das preocupações humanas.
   O Sábado constitui o coração da lei de Israel. Observar os mandamentos é corresponder à sabedoria  e à vontade de Deus expressa na sua obra de criação.


Santidade de Deus                                                                                                                                          43

  O oitavo dia. Mas para nós nasceu um dia novo: o dia da Ressurreição de Cristo. O sétimo dia encerra a primeira criação. O oitavo dia dá início à nova criação. Assim, a obra da criação culmina na obra maior da redenção. A primeira criação encontra o seu sentido e o seu ponto culminante na nova criação em Cristo, cujo esplendor ultrapassa o da primeira.

RESUMINDO

  Os anjos são criaturas espirituais que glorificam a Deus sem cessar e servem aos seus desígnios salvíficos em relação às demais criaturas: Os anjos cooperam para todos os nossos bens.
  Os anjos cercam a Cristo, seu Senhor. Servem-no particularmente no cumprimento da sua missão salvífica para com os homens.
  A Igreja venera os anjos que a ajudam na sua peregrinação terrestre e protegem cada ser humano.
  Deus quis a diversidade das suas criaturas e a bondade própria delas, a sua interdependência e ordem. Destinou todas as criaturas materiais ao bem do gênero humano. O homem, e através dele a criação inteira, destina-se à glória de Deus.
  Respeitar as leis inscritas na criação e as relações que derivam da natureza das coisas é princípio de sabedoria e fundamento da moral.


PARÁGRAFO 6

O HOMEM

  “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27). O homem ocupa um lugar único na criação: ele é “à imagem de Deus” (I); na sua própria natureza une o mundo espiritual e o mundo material (II); é criado “homem e mulher” (III); Deus o estabeleceu na sua amizade (IV).


Santidade de Deus                                                                                                                                         44

I. “À IMAGEM DE DEUS”


  De todas as criaturas visíveis, só o homem é “capaz de conhecer e amar o seu Criador”; ele é “a única criatura da terra que Deus quis em si mesma”; só ele é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e o amor, a vida de Deus. Foi para este fim que o homem foi criado, e aí reside a razão fundamental da sua dignidade:

   Que motivo vos fez constituir o homem em dignidade tão grande? O amor inestimável pelo qual enxergastes em vós mesmo a vossa criatura, e vos apaixonastes por ela; pois foi por amor que as criastes, foi por amor que lhe destes um ser capaz de degustar o vosso Bem eterno.

  Por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor, que ninguém mais pode dar em seu lugar.
  Deus criou tudo para o homem, mas o homem foi criado para servir e amar a Deus e para oferecer-lhe toda a criação:

   Quem é, pois, o ser que vai vir à existência cercado de tal consideração? É um homem, grande e admirável figura viva, mais precioso aos olhos de Deus do que a criação inteira: é o homem, é para ele que existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da criação, e é à salvação dele que Deus atribuiu tanta importância, que nem sequer poupou seu Filho único em seu favor. Pois Deus não se cansou de tudo empreender para fazer o homem subir até ele e fazê-lo sentar-se à sua direita.

  “Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo Encarnado”:

   São Paulo ensina-nos que dois homens estão na origem do gênero humano: Adão e Cristo... “o primeiro Adão, diz ele, foi criado como um ser humano que recebeu a vida; o segundo é um ser espiritual que dá a vida”. O primeiro foi criado pelo segundo, de quem recebeu a alma que o faz viver... O segundo Adão estabeleceu a sua imagem no primeiro Adão quando o modelou. E assim se revestiu da natureza deste último e dele recebeu o nome, a fim de não deixar perder aquilo que havia feito à sua imagem. Primeiro Adão, segundo Adão: o primeiro começou, o segundo não acabará. Pois o segundo é verdadeiramente o primeiro, como ele mesmo disse: “Eu sou o Primeiro e o Último”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          45

  Graças à origem comum, o gênero humano forma uma unidade. Pois Deus “de um só fez toda a raça humana” At 17,26):

   Maravilhosa visão que nos faz contemplar o gênero humano na unidade da sua origem em Deus..., na unidade da sua natureza, composta igualmente em todos de um corpo material e de uma alma espiritual; na unidade do seu fim imediato e da sua missão no mundo; na unidade do seu habitat: a terra, de cujos bens todos os homens, por direito natural, podem usar para sustentar e desenvolver a vida; na unidade do seu fim sobrenatural: Deus mesmo, ao qual todos devem tender, na unidade dos meios para atingir este fim; ... na unidade do seu resgate, operando em favor de todos por Cristo.

  “Esta lei de solidariedade humana e de caridade”, sem excluir a rica variedade das pessoas, das culturas e dos povos, nos garante que todos os homens são verdadeiramente irmãos.

II. “CORPORE ET ANIMA UNUS”


  A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual. O relato bíblico exprime esta realidade com uma linguagem simbólica, ao afirmar que “O Senhor Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou nas suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Portanto, o homem na sua totalidade é querido por Deus.
  Muitas vezes o termo alma designa na Sagrada Escritura a vida humana ou a pessoa humana inteira. Mas designa também o que há de mais íntimo no homem e o que há nele de maior valor, aquilo que mais particularmente o faz ser imagem de Deus: “alma” significa o princípio espiritual no homem.
  O corpo do homem participa da dignidade da “imagem de Deus”: ele é corpo humano precisamente porque é animado pela alma espiritual, e é a pessoa humana inteira que está destinada a tornar-se, no Corpo de Cristo, o Templo de Espírito:


Santidade de Deus                                                                                                                                          46

   Unidade de corpo e de alma, o homem, por sua própria condição corporal, sintetiza em si os elementos do mundo material, que nele assim atinge sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor. Não é, portanto, lícito ao homem desprezar a vida corporal; ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus e destinado à Ressurreição no último dia.

  A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a “forma” do corpo; ou seja, é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza.
  A Igreja ensina que cada alma espiritual é diretamente criada por Deus – não é “produzida” pelos pais – e é imortal: ela não perece quando da separação do corpo na morte, e se unirá novamente ao corpo quando da ressurreição final.
  Por vezes ocorre que a alma apareça distinta do espírito. Assim S. Paulo ora para que nosso “ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo”, seja guardado irrepreensível na Vinda do Senhor (Ts 5,23). A Igreja ensina que esta distinção não introduz uma dualidade na alma. “Espírito” significa que o homem está ordenado desde a sua criação para o seu fim sobrenatural, e que a sua alma é capaz de ser elevada gratuitamente à comunhão com Deus.
  A tradição espiritual da Igreja insiste também no coração, no sentido bíblico de “fundo do ser” (Jr 31,33), onde a pessoa se decide ou não por Deus.

III. “HOMEM E MULHER OS CRIOU”


IGUALDADE E DIFERENÇA QUERIDAS POR DEUS

  O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos por Deus: por um lado, em uma perfeita igualdade enquanto pessoas humanas, e por outro, no seu ser respectivo de homem e de mulher.


Santidade de Deus                                                                                                                                          47

 “Ser homem”, “ser mulher” é uma realidade boa e querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade inamissível que lhes vem diretamente de Deus, seu Criador. O homem e a mulher são criados em idêntica grande dignidade “ à imagem de Deus”. no seu “ser homem” e seu “ser mulher”, refletem a sabedoria e a bondade do Criador.

   Deus não é de modo algum à imagem do homem. Não é nem homem nem mulher. Deus é puro espírito, não havendo nele lugar para a diferença dos sexos. Mas as “perfeições” do homem e da mulher refletem algo da infinita perfeição de Deus: as de uma mãe e as de um pai e esposo.

“UM PARA O OUTRO” – “UMA UNIDADE A DOIS”

  Criados conjuntamente, Deus quer o homem e a mulher um para o outro. A Palavra de Deus dá-nos a entender isto através de diversas passagens do texto sagrado. “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2,18). Nenhum dos animais pode ser este “vis-à-vis” do varão (Gn 2,19-20). A mulher que Deus “modela” da costela tirada do varão e que leva a ele provoca da parte do homem um grito de admiração, uma exclamação de amor e de comunhão: “É osso de meus ossos e carne de minha carne” (Gn 2,23). O homem descobre a mulher como um outro “eu”, da mesma humanidade.
  O homem e a mulher são feitos “um para o outro”: não que Deus os tivesse feito apenas “pela metade” e “incompletos”; criou-os para uma comunhão de pessoas, na qual cada um dos dois pode ser “ajuda” para o outro, por serem ao mesmo tempo iguais enquanto pessoas (“osso de meus ossos...”) e complementares enquanto masculino e feminino. No matrimônio, Deus os une de maneira que, formando “uma só carne” (Gn 2,24), possam transmitir a vida humana: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra” (Gn 1,28). Ao transmitirem a seus descendentes a vida humana, o homem e a mulher, como esposos e pais, cooperam de uma forma única na obra do Criador.


Santidade de Deus                                                                                                                                          48

  No desígnio de Deus, o homem e a mulher têm a vocação de “submeter”a terra (Gn 1,28) como “intendentes” de Deus. Esta soberania não deve ser uma dominação arbitrária e destrutiva. À imagem do Criador “que ama tudo o que existe” (Sb 11,24), o homem e a mulher são chamados a participarem da Providência divina em relação às demais criaturas. Daí a responsabilidade deles face ao mundo que Deus lhes confiou.

IV. O HOMEM NO PARAÍSO


O primeiro homem não só foi criado bom, mais também foi constituído em uma amizade com o seu Criador e em uma tal harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava, que só serão superadas pela glória da nova criação em Cristo.
  Interpretando de maneira autêntica o simbolismo da linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da Tradição, a Igreja ensina que os nossos primeiros pais Adão e Eva foram constituídos em um estado “de santidade e de justiça original”. Esta graça da santidade original era uma “participação da vida divina”.
  Pela irradiação desta graça, todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas. Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer, nem sofrer. A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher, e finalmente a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação constituíam o estado denominado “justiça original”.
  O “domínio” do mundo que Deus havia outorgado ao homem desde o início realizava-se antes de tudo no próprio homem como domínio de si mesmo. O homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, á cobiça dos bens terrestres e à auto-afirmação contra os imperativos da razão.
  O sinal da familiaridade com Deus é o fato de Deus o colocar no jardim. Lá vive “para o cultivar e o guardar” (Gn 2,15): o trabalho não é uma penalidade, mas sim a colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível.
  É toda esta harmonia da justiça original, prevista para o homem pelo desígnio de Deus, que será perdida pelo pecado dos nossos primeiros pais.


Santidade de Deus                                                                                                                                          49

RESUMINDO

  “Pai Santo, criastes o homem e a mulher à vossa imagem e lhes confiastes todo o universo, para que servindo a Vós, seu Criador, dominassem toda criatura”.
  O homem foi predestinado a reproduzir a imagem do Filho de Deus feito homem – “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15) – a de que Cristo seja o primogênito de uma multidão de irmãos e de irmãs.
  O homem é “unidade de corpo e de alma”. A doutrina da fé afirma que a alma espiritual e imortal é criada diretamente por Deus.
  “Deus não criou o homem solitário. Desde o início. ‘Deus os criou varão e mulher’ (Gn 1,27). Esta união constituiu a primeira forma de comunhão de pessoas”.
  A revelação dá-nos a conhecer o estado de santidade e de justiça originais do homem e da mulher antes do pecado: da amizade deles com Deus advinha a felicidade da existência deles no Paraíso.


PARÁGRAFO 7

A QUEDA

  Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas. Todavia, ninguém escapa à experiência do sofrimento, dos males existentes na natureza – que aparecem como ligados às limitações próprias das criaturas - , e sobretudo à questão do mal moral. Donde vem o mal? “eu perguntava donde vem o mal, e não encontrava saída”, diz Sto. Agostinho, e a sua própria busca sofrida não encontrará saída a não ser na sua conversão ao Deus vivo. Pois “o mistério da iniqüidade” (2Ts 2,7) só se explica à luz do “Mistério da piedade” (1Tm 3,16). A revelação do amor divino em Cristo manifestou ao mesmo tempo a extensão do mal e a superabundância da graça. Precisamos, pois, abordar a questão da origem do mal fixando o olhar da nossa fé naquele que, e só Ele, é o vencedor do mal.


Santidade de Deus                                                                                                                                          50

I. ONDE O PECADO ABUNDOU, A GRAÇA SUPERABUNDOU


A REALIDADE DO PECADO

  O pecado está presente na história do homem: seria inútil tentar ignorá-lo ou dar a esta realidade obscura outros nomes. Para tentarmos compreender o que é o pecado, é preciso antes de tudo reconhecer a ligação profunda do homem com Deus, pois fora desta relação o mal do pecado não é desmascarado na sua verdadeira identidade de recusa e de oposição face a Deus, embora continue a pesar sobre a vida do homem e sobre a história.
  A realidade do pecado, e mais particularmente do pecado das origens, só se entende à luz da Revelação divina. Sem o conhecimento que ela nos dá de Deus não se pode reconhecer com clareza o pecado, sendo-se tentado a explicá-lo unicamente como uma falta de crescimento, como uma fraqueza psicológica, um erro, a conseqüência necessária de uma estrutura social inadequada, etc. Somente à luz do desígnio de Deus sobre o homem compreende-se que o pecado é um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas criadas para que possam amá-lo e amar-se mutuamente.

O PECADO ORIGINAL – UMA VERDADE ESSENCIAL DA FÉ

  Com o progresso da Revelação é esclarecida também a realidade do pecado. Embora o povo de Deus do Antigo Testamento tenha abordado a dor da condição humana à luz da história da queda narrada no Gênesis, não era capaz de entender o significado último desta história, que só se manifesta plenamente à luz da Morte e da Ressurreição de Jesus Cristo. É preciso conhecer a Cristo como fonte da graça para conhecer Adão como fonte do pecado. É o Espírito-Paráclito, enviado por Cristo ressuscitado, que veio estabelecer “a culpabilidade do mundo a respeito do pecado” (Jô 16,8), ao revelar Aquele que é o Redentor do mundo.


Santidade de Deus                                                                                                                                          51

  A doutrina do pecado original é por assim dizer “o reverso” da Boa Noticia de que Jesus é o Salvador de todos os homens, de que todos têm necessidade da salvação e de que a salvação é oferecida a todos graças a Cristo. A Igreja, que tem o senso de Cristo, sabe perfeitamente que não se pode atentar contra a revelação do pecado original sem atentar contra o mistério de Cristo.

PARA LER O RELATO DA QUEDA

  O relato sobre a queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no início da história humana. A Revelação dá-nos a certeza de fé de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente pelos nossos primeiros pais.

II. A QUEDA DOS ANJOS


  Por trás da opção de desobediência de nossos primeiros pais há uma voz sedutora, que se opõe a Deus, e que, por inveja, os faz cair na morte. A Escritura e a Tradição da Igreja vêem neste ser um anjo destronado, chamado Satanás ou Diabo. A Igreja ensina que ele tinha sido anteriormente um anjo bom, crido por Deus. “Com efeito, o Diabo  e outros demônios foram por Deus criados bons em (sua) natureza, mas se tornaram maus por sua própria iniciativa”.
  A Escritura fala de um pecado desses anjos. Esta “queda” consiste na opção livre desses espíritos criados, que rejeitaram radical e irrevogavelmente a Deus e o seu Reino. Temos um reflexo desta rebelião nas palavras do Tentador ditas a nossos primeiros pais: “E vós sereis como deuses” (Gn 3,5). O Diabo é “pecador desde o princípio” (1Jo, 3,8), “pai da mentira” (Jo 8,44).
  É o caráter irrevogável da sua opção, e não uma deficiência da infinita misericórdia divina, que faz com que o pecado dos anjos não possa ser perdoado. “Não existe arrependimento para eles depois da queda, como não existe arrependimento para os homens após a morte”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          52

  A Escritura atesta a influência nefasta daquele que Jesus chama de “o homicida desde o princípio” (Jo 8,44), e que até chegou a tentar desviar Jesus da sua missão recebida do Pai. “Para isto é que o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo” (1Jo 3,9). A mais grave dessas obras, devido às suas conseqüências, foi a sedução mentirosa que induziu o homem a desobedecer a Deus.
  Contudo, o poder de Satanás não é infinito. Ele não passa de uma criatura, poderosa pelo fato de ser puro espírito, mas sempre criatura: não é capaz de impedir a edificação do Reino de Deus. embora Satanás atue no mundo por ódio contra Deus e o seu Reino em Jesus Cristo, e embora a sua ação cause graves danos – de natureza espiritual e, indiretamente, até de natureza física – para cada homem e para a sociedade, esta ação é permitida pela Divina Providência, que com vigor e doçura dirige a história do homem e do mundo. A permissão divina da atividade diabólica é um grande mistério, mas “nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam” (Rm 8,28).

III. O PECADO ORIGINAL


A LIBERDADE POSTA À PROVA

  Deus criou o homem à sua imagem e o constituiu na sua amizade. Criatura espiritual, o homem só pode viver esta amizade como livre submissão a Deus. É o que exprime a proibição, feita ao homem, de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, “pois no dia em que dela comeres, terás de morrer” (Gn 2,17). “A árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2,17) evoca simbolicamente o limite intransponível que o homem, enquanto criatura, deve livremente reconhecer e respeitar com confiança. O homem depende do Criador, está submetido às leis da criação e às normas morais que regem o uso da liberdade.


Santidade de Deus                                                                                                                                          53

O PRIMEIRO PECADO DO HOMEM

  O homem, tentado pelo Diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador e, abusando da sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Foi nisto que consistiu o primeiro pecado do homem. Todo pecado, daí em diante, será uma desobediência a Deus e uma falta de confiança em sua bondade.
  Neste pecado, o homem preferiu-se a si mesmo a Deus, e com isto menosprezou a Deus: optou por si mesmo contra Deus, contrariando as exigências do seu estado de criatura e conseqüentemente de seu próprio bem. Criado em um estado de santidade, o homem estava destinado a ser plenamente “divinizado” por Deus na glória. Pela sedução do Diabo, quis “ser como Deus”, mas “sem Deus, e antes de Deus, e não segundo Deus”.
  A Escritura mostra as conseqüências dramáticas desta primeira desobediência. Adão e Eva perdem de imediato a graça da santidade original. Têm medo de Deus do qual fizeram uma imagem falsa, a de um Deus enciumado das suas prerrogativas.
  A harmonia na qual estavam, estabelecida graças à justiça original, está destruída; o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompido; a união entre o homem e a mulher é submetida a tensões; suas relações serão marcadas pela cupidez e pela dominação. A harmonia com a criação está rompida: a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil. Por causa do homem, a criação está submetida “à servidão da corrupção” (Rm 8,20). Finalmente, vai realizar-se a conseqüência explicitamente anunciada para o caso de desobediência: o homem “voltará ao pó do qual é formado” (Gn 3,19). A morte entra na história da humanidade.
  A partir do primeiro pecado, uma verdadeira “invasão” do pecado inunda o mundo: o fratricídio cometido por Caim contra Abel; a corrupção universal em decorrência do pecado; na história de Israel, o pecado se manifesta freqüentemente e sobre tudo como uma infidelidade ao Deus da Aliança e como transgressão da Lei de Moises; e mesmo após a Redenção de Cristo, entre os cristãos, o pecado se manifesta de muitas maneiras.


Santidade de Deus                                                                                                                                          54

 A Escritura e a Tradição da Igreja não cessam de recordar a presença e a universalidade do pecado na história do homem:

   O que nos é manifestado pela Revelação divina, concorda com a própria experiência. Pois o homem, olhando para o seu coração, descobre-se também inclinado ao mal e mergulhado em múltiplos males que não podem provir do seu Criador, que é bom. Recusando-se muitas vezes a reconhecer Deus como seu princípio, o homem destruiu a devida ordem em relação ao fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua harmonia consigo mesmo, com os outros homens e com as coisas criadas.

CONSEQUÊNCIAS DO PECADO DE ADÃO PARA A HUMANIDADE

  Todos os homens estão implicados no pecado de Adão. São Paulo afirma: “Pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores” (Rm 5,19). “Como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram...” (Rm 5,12). À universalidade do pecado e da morte o Apóstolo opõe a universalidade da salvação em Cristo: “Assim como da falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra de justiça, de um só, resultou para todos os homens justificação que traz a vida” (Rm 5,18).
  Na linha de S. Paulo, a Igreja sempre ensinou que a imensa miséria que oprime os homens e a sua inclinação para o mal e para a morte são incompreensíveis, a não ser referindo-se ao pecado de Adão e sem o fato de que este nos transmitiu um pecado que por nascença nos afeta a todos e é “morte da alma”. Em razão desta certeza de fé, a Igreja ministra o batismo para a remissão dos pecados mesmo às crianças que não cometeram pecado pessoal.
  De que maneira o pecado de Adão se tornou o pecado de todos os seus descendentes? O gênero humano inteiro é um Adão – “como um só corpo de um só homem”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          55

 Em virtude desta “unidade de gênero humano” todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão implicados na justiça de Cristo. Contudo, a transmissão do pecado original é um mistério que não somos capazes de compreender plenamente. Sabemos, porém, pela Revelação, que Adão havia recebido a santidade e a justiça originais não exclusivamente para si, mas para toda a natureza humana: ao cederem ao Tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana, que vão transmitir em um estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais. E é por isso que o pecado original é denominado “pecado” de maneira analógica: é um pecado “contraído” e não “cometido”, um estado e não um ato.
  Embora próprio de cada um, o pecado original não tem, em nenhum descendente de Adão, um caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e da justiça originais, mas a natureza humana não é totalmente corrompida: ela é lesada na suas próprias forças naturais, submetida à ignorância, ao sofrimento e ao império da morte, e inclinada ao pecado (esta propensão ao mal é chamada “concupiscência”). O Batismo, ao conferir a vida da graça de Cristo, apaga o pecado original e torna a voltar o homem para Deus, porém as conseqüências de tal pecado sobre a natureza, enfraquecida e inclinada ao mal, permanecem no homem e o incitam ao combate espiritual.

   A doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original adquiriu precisão sobretudo no século V, em especial sob o impulso da reflexão de Sto. Agostinho contra o pelagianismo, e no século XVI, em oposição à Reforma protestante. Pelágio sustentava que o homem podia, pela força natural da sua vontade livre, sem a ajuda necessária da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa; limitava assim a influência da falta de Adão à  de um mau exemplo. Os primeiros Reformadores protestantes, ao contrário, ensinavam que o homem estava radicalmente pervertido e sua liberdade anulada pelo pecado original: identificavam o pecado herdado por cada homem com a tendência ao mal (“concupiscentia”), que seria insuperável. A Igreja pronunciou-se especialmente sobre o sentido do dado revelado no tocante ao pecado original no segundo Concílio de Oranges em 529 e no Concílio de Trento em 1546.


Santidade de Deus                                                                                                                                          56

UM DURO COMBATE...

  A doutrina sobre o pecado original – ligada à doutrina da Redenção através de Cristo – propicia um discernimento lúcido sobre a situação do homem e da sua ação no mundo. Pelo pecado dos primeiros pais, o Diabo adquiriu uma certa dominação sobre o homem, embora este último permaneça livre. O pecado original acarreta a “servidão debaixo do poder daquele que tinha o império da morte, isto é, do Diabo”. Ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes.
  As conseqüências do pecado original e de todos os pecados pessoais dos homens conferem ao mundo em seu conjunto uma condição pecadora, que pode ser designada com a expressão de S. João: “O pecado do mundo” (Jo 1,29). Com esta expressão quer-se exprimir também a influência negativa que exercem sobre as pessoas as situações comunitárias, e as estruturas sociais que são o fruto dos pecados dos homens.
  Esta situação dramática do mundo, que “o mundo inteiro está sob o poder do Maligno” (Jô 1,19), faz da vida do homem um combate:

   Uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade. Iniciada desde a origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do Senhor. Inserido nesta batalha, o homem deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus.

IV. “NÃO O ABANDONASTE AO PODER DA MORTE”


  Depois da queda, o homem não foi abandonado por Deus. Ao contrário, Deus o chama e lhe anuncia de modo misterioso a vitória sobre o mal e o soerguimento da queda. Esta passagem do Gêneses foi chamada de “Proto-evangelho”, por ser o primeiro anúncio do Messias redentor, a do combate entre a serpente e a Mulher e a vitória final de um descendente desta última.


Santidade de Deus                                                                                                                                          57

  A tradição cristã vê nesta passagem um anúncio do “novo Adão”, o qual, pela sua “obediência até à morte de Cruz” (Fl 2,8), repara com superabundância a desobediência de Adão. De resto, numerosos Padres e Doutores da Igreja vêem na mulher anunciada no “proto-evangelho” a mãe de Cristo, Maria, como “nova Eva”. Foi ela que, por primeira e de uma forma única, se beneficiou da vitória sobre o pecado, conquistada por Cristo: ela foi preservada de toda mancha do pecado original e durante toda vida terrestre, por uma graça especial de Deus, não cometeu nenhuma espécie de pecado.
  Mas por que Deus não impediu o primeiro homem de pecar? S. Leão Magno responde: “A graça inefável de Cristo deu-nos bens melhores do que aqueles que a inveja do Demônio nos havia subtraído”. E Sto. Tomás de Aquino: “Nada obsta a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado após o pecado. Com efeito, Deus permite que os males aconteçam para tirar deles um bem maior. Donde a palavra de S. Paulo: ‘Onde abundou o pecado, superabundou a graça’ (Rm 5,20). E o canto do Exultet: ‘Ò feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor’”.

RESUMINDO

   “Deus não fez a morte, nem tem prazer em destruir os viventes... Foi pela inveja do Diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 1,13; 2,24).
   Satanás ou o Diabo, bem como os demais demônios  são anjos decaídos por se terem recusado livremente a servir a Deus e ao seu desígnio. Sua opção contra Deus é definitiva. Eles tentam associar o homem à sua revolta contra Deus.
   “Constituído por Deus em estado de justiça, o homem, instigado pelo Maligno, desde o início da história, abusou da própria liberdade. Levantou-se contra Deus desejando atingir o seu objetivo fora dele”.
   Pelo seu pecado, Adão, na qualidade de primeiro homem, perdeu a santidade e a justiça originais que havia recebido de Deus não somente para si, mas para todos os seres humanos.


Santidade de Deus                                                                                                                                          58

   À sua descendência, Adão e Eva transmitiram a natureza humana ferida pelo seu primeiro pecado, portanto privada da santidade e da justiça originais. Esta privação é denominada “pecado original”.
   Em conseqüência do pecado original, a natureza humana está enfraquecida nas suas forças, submetida à ignorância, ao sofrimento e à dominação da morte, e inclinada ao pecado (inclinação chamada de “concupiscência”).
   “Mantemos, portanto, com o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido com a natureza humana, ‘não por imitação mas por propagação’, e que ele é, portanto, ‘próprio a cada um’”.
   A vitória sobre o pecado, conseguida por Cristo, deu-nos bens melhores do que aqueles que o pecado nos havia tirado: “Onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20).
   “Segundo a fé dos cristãos, este mundo foi criado e conservado pelo amor do Criador; este mundo na verdade foi reduzido à servidão do pecado, mas Cristo crucificado e ressuscitado quebrou o poder do Maligno e libertou o mundo...”.


ARTIGO 10

“CREIO NO PERDÃO DOS PECADOS”

  O Símbolo dos Apóstolos correlaciona a fé no perdão dos pecados com a fé no Espírito Santo, mas também com a fé na Igreja e na comunhão dos santos. Foi dando o Espírito Santo aos seus apóstolos que Cristo ressuscitado lhes conferiu o seu próprio poder divino de perdoar os pecados: “Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados; aqueles a quem os retiverdes, lhes serão retidos” (Jô 20,22-23).

   (A Segunda Parte do Catecismo tratará explicitamente do perdão dos pecados pelo batismo, pelo sacramento da penitência e pelos outros sacramentos, sobretudo a Eucaristia. Por isso basta aqui evocar sucintamente alguns dados básicos.)

I. UM SÓ BATISMO PARA O PERDÃO DOS PECADOS


  Nosso Senhor ligou o perdão dos pecados à fé e o Batismo: “Ide por tudo o mundo e proclamai o Evangelho a toda criatura. Aquele que crer e for batizado será salvo” (Mc 16,15-16).


Santidade de Deus                                                                                                                                          59

 O Batismo é o primeiro e principal sacramento do perdão dos pecados porque nos une a Cristo morto pelos nossos pecados, ressuscitado para nossa justificação, para que “nós também vivamos vida nova” (Rm 6,4).
  “No momento em que fazemos a nossa primeira profissão de fé, recebendo o santo Batismo que nos purifica, o perdão que recebemos é tão pleno e tão completo que não nos resta absolutamente nada a apagar, seja do pecado original, seja dos pecados cometidos pela nossa própria vontade, nem nenhuma pena a sofrer para expiá-los.(...) Contudo, a graça do Batismo não livra ninguém de todas as fraquezas da natureza. Pelo contrário, ainda temos de combater os movimentos da concupiscência, que não cessam de arrastar-nos para o mal”.
  Neste combate contra a inclinação para o mal, quem seria suficientemente forte e vigilante para evitar toda ferida do pecado? “Se, portanto, era necessário que a Igreja tivesse o poder de perdoar os pecados, também era preciso que o Batismo não fosse para ela o único meio de servir-se dessas chaves do Reino dos Céus, que havia recebido de Jesus Cristo; era preciso que ela fosse capaz de perdoar as faltas a todos os penitentes, ainda que tivessem pecado até o último instante da sua vida”.
  É pelo sacramento da Penitência que o batizado pode ser reconciliado com Deus e com a Igreja:

   Os padres da Igreja chamavam com razão a Penitência “um Batismo laborioso”. O sacramento da Penitência é necessário para a salvação daqueles que caíram depois do Batismo, assim como o Batismo para os que ainda não foram regenerados.

II. O PODER DAS CHAVES


  Depois da sua Ressurreição, Cristo enviou seus Apóstolos para “anunciar a todas as nações o arrependimento em seu Nome em vista da remissão dos pecados” (2Cor 5,18), os Apóstolos e sues sucessores não o exercem somente anunciando aos homens o perdão de Deus merecido para nós por Cristo e chamando-os à conversão e à fé, mas também comunicando-lhes a remissão dos pecados pelo Batismo e reconciliando-os com Deus e com a Igreja graças ao poder das chaves recebido de Cristo:


Santidade de Deus                                                                                                                                          60

   A Igreja recebeu as chaves do Reino dos Céus para que se opere nela a remissão dos pecados pelo sangue de Cristo e pela ação do Espírito Santo. É nesta Igreja que a alma revive, ela que estava morta pelos pecados, a fim de viver com Cristo, cuja graça nos salvou.

  Não há pecado algum, por mais grave que seja, que a santa Igreja não possa perdoar. “Não existe ninguém, por mau e culpado que seja, que não deva esperar com segurança o seu perdão, desde que o seu arrependimento seja sincero”. Cristo, que morreu por todos os homens, quer que, na sua Igreja, as portas do perdão estejam sempre abertas a todo aquele que recua do pecado.
  A catequese empenhar-se-á em despertar e alimentar nos fiéis a fé na grandeza incomparável do dom que Cristo ressuscitado concedeu à sua Igreja: a missão e o poder de perdoar verdadeiramente os pecados, pelo ministério dos apóstolos e dos seus sucessores:

   O Senhor quer que seus discípulos tenham um poder imenso: quer que seus pobres servidores realizem em seu nome tudo o que havia feito quando estava na terra.
   Os presbíteros receberam um poder que Deus não deu nem aos anjos nem aos arcanjos. Deus sanciona lá no alto tudo o que os sacerdotes fazem aqui embaixo.
   Se na Igreja não existisse a remissão dos pecados, não existiria nenhuma esperança, nenhuma perspectiva de uma vida eterna e de uma libertação eterna. Demos graças a Deus que deu à sua Igreja um tal dom.

RESUMINDO

   O Credo relaciona “o perdão dos pecados” com a profissão de fé no Espírito Santo. Com efeito, Cristo ressuscitado confiou aos Apóstolos o poder de perdoar os pecados quando lhes deu o Espírito Santo.
   O Batismo é o primeiro e o principal sacramento para o perdão dos pecados: une-nos a Cristo morto e ressuscitado e nos dá o Espírito Santo.


Santidade de Deus                                                                                                                                          61

  Pela vontade de Cristo, a Igreja possui o poder de perdoar os pecados dos batizados, e o exerce através dos Bispos e dos presbíteros de maneira habitual no sacramento da Penitência.
   “Na remissão dos pecados, os presbíteros e os sacramentos são meros instrumentos dos quais Nosso Senhor Jesus Cristo, único autor e dispensador da nossa salvação, se apraz em se servir para apagar as nossas iniqüidades e dar-nos a graça da justificação”.


SEGUNDA PARTE
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO CRISTÃO


SEGUNDA SEÇÃO
OS SETE SACRAMENTOS DA IGREJA

  Os sacramentos da nova lei foram instituídos por Cristo e são sete, a saber: o Batismo, a Confirmação, a Eucaristia, a Penitência, a Unção dos Enfermos, a Ordem e o Matrimônio. Os sete sacramentos atingem todas as etapas e todos os momentos importantes da vida do cristão: dão à vida de fé do cristão origem e crescimento, cura e missão.


CAPÍTULO II

OS SACRAMENTOS DE CURA



  Pelos sacramentos da iniciação cristã, o homem recebe a vida nova de Cristo. Ora, esta vida nós a trazemos “em vasos de argila” (2Cor 4,7). Agora, ela ainda se encontra “escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Estamos ainda em “nossa morada terrestre” (2Cor 5,1), sujeitos ao sofrimento, à doença e à morte. Esta nova vida de filhos de Deus pode se tornar debilitada e até perdida pelo pecado.


Santidade de Deus                                                                                                                                          62

  O Senhor Jesus Cristo, médico de nossas almas e de nossos corpos, ele que remiu os pecados do paralítico e restituiu-lhe a saúde do corpo, quis que sua Igreja continuasse, na força do Espírito Santo, sua obra de cura e de salvação, também junto de seus próprios membros. É esta a finalidade dos dois sacramentos de cura: o sacramento da Penitência e o sacramento de Unção dos Enfermos.


ARTIGO 4

O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO

  “Aqueles que se aproximam do sacramento da Penitência obtém da misericórdia divina o perdão da ofensa feita a Deus e ao mesmo tempo são reconciliados com a Igreja que feriram pecando, e a qual colabora para sua conversão com caridade, exemplo e oração”.

I. COMO SE CHAMA ESTE SACRAMENTO?


  Chama-se sacramento da Conversão, pois realiza sacramentalmente o convite de Jesus à conversão, o caminho de volta ao Pai, do qual a pessoa se afastou pelo pecado.
  Chama-se sacramento da Penitência porque consagra um esforço pessoal e eclesial de conversão, de arrependimento e de satisfação do cristão pecador.
  É chamado sacramento da Confissão porque a declaração, a confissão dos pecados diante do sacerdote é um elemento essencial desse sacramento. Num sentido profundo esse sacramento também é uma “confissão”, reconhecimento e louvor da santidade de Deus e de sua misericórdia para com o homem pecador.


Santidade de Deus                                                                                                                                          63

  Também é chamado sacramento do perdão porque pela absolvição sacramental do sacerdote Deus concede “o perdão e a paz”.
  É chamado sacramento da reconciliação porque dá ao pecador o amor de Deus que reconcilia: “Reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,20). Quem do amor misericordioso de Deus está pronto a responder ao apelo do Senhor: “Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão” (Mt 5,24).

II. POR QUE UM SACRAMENTO DA RECONCILIAÇÃO APÓS O BATISMO?

“Vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus” (1Cor 6,11). É preciso tomar consciência da grandeza do dom de Deus que nos é oferecido nos sacramentos da iniciação cristã para compreender até que ponto o pecado é algo que deve ser excluído daquele que se “vestiu de Cristo” (Gl 3,27). Mas o Apóstolo São João também diz: “Se dissermos: não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8). E o próprio Senhor nos ensinou a rezar: “Perdoa-nos os nossos pecados” (Lc 11,4), vinculando o perdão de nossas ofensas ao perdão que Deus nos concederá de nossos pecados.
  A conversão a Cristo, o novo nascimento pelo Batismo, o dom do Espírito Santo, o Corpo e o Sangue de Cristo recebidos como alimentos nos tornaram “santos e irrepreensíveis diante dele” (Ef 1,4), como a própria Igreja, esposa de Cristo, é Santa e irrepreensível” (Ef 5,27). Entretanto a nova vida recebida na iniciação cristã não suprimiu a fragilidade e a fraqueza da natureza humana, nem a inclinação ao pecado, que a tradição chama de concupiscência, que continua nos batizados para prová-los no combate da vida cristã, auxiliados pela graça de Cristo. É o combate da conversão para chegar à santidade e à vida eterna, para a qual somos incessantemente chamados pelo Senhor.


Santidade de Deus                                                                                                                                          64

III. A CONVERSÃO DOS BATIZADOS

  Jesus convida à conversão. Este apelo é parte essencial do anúncio do Reino: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15).
  Na pregação da Igreja este apelo é feito em primeiro lugar aos que ainda não conhecem a Cristo e seu Evangelho. Além disso, o Batismo é o principal lugar de primeira e fundamental conversão. É pela fé na boa nova e pelo Batismo que se renuncia ao mal e se adquire a salvação, isto é, a remissão de todos os pecados e o dom da nova vida.
  Ora, o apelo de Cristo à conversão continua a soar na vida dos cristãos. Esta segunda conversão é uma tarefa ininterrupta para toda a Igreja, que “reúne em seu próprio seio os pecadores” e que “é ao mesmo tempo santa e sempre, na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação”. Este esforço de conversão não é apenas uma obra humana. É o movimento do “coração contrito” (Sl 51,19) atraído e movido pela graça a responder ao amor misericordioso de Deus que nos amou primeiro.
  Comprova-o a conversão de S. Pedro após a tríplice negação de seu mestre. O olhar de infinita misericórdia de Jesus provoca lágrimas de arrependimento (cf. Lc 22,61) e, depois da ressurreição do Senhor, a afirmação, três vezes reiterada, de seu amor por ele. A segunda conversão também possui uma dimensão comunitária. Isto aparece no apelo do Senhor a toda uma Igreja: “Converte-te!” (9Ap 2,5.16).

   Sto. Ambrósio, referindo-se às duas conversões, diz que na Igreja “existem a água e as lágrimas: a água do Batismo e as lágrimas da penitência”.

IV. A PENITÊNCIA INTERIOR


  Como já nos profetas, o apelo de Jesus à conversão e à penitência não visa em primeiro lugar às obras exteriores, “o saco e a cinza”, os jejuns e as mortificações, mas à conversão do coração, à penitência interior. Sem ela, as obras de penitência continuam estéreis e enganadoras: a conversão interior, ao contrário, impele a expressar essa atitude por sinais visíveis, gestos e obras de penitência.


Santidade de Deus                                                                                                                                          65

  A penitência interior é uma reorientação radical de toda a vida, um retorno, uma conversão para Deus de todo nosso coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal e repugnância às más obras que cometemos. Ao mesmo tempo, é o desejo e a resolução de mudar de vida com a esperança da misericórdia divina e a confiança na ajuda de sua graça. Esta conversão do coração vem acompanhada de uma dor e uma tristeza salutares, chamadas pelos Padres de “aflição do espírito”, “arrependimento do coração”.
  O coração do homem apresenta-se pesado e endurecido. É preciso que Deus dê ao homem um coração novo. A conversão é antes de tudo uma obra da graça de Deus que reconduz nossos corações a ele: “Convertei-nos, a ti, Senhor, e nos converteremos” (Lm 5,21). Deus dá a força de começar de novo. É descobrindo a grandeza do amor de Deus que nosso coração experimenta o horror e peso do pecado e começa a ter medo de ofender a Deus pelo mesmo pecado, e ser separado dele. O coração humano converte-se olhando para aquele que foi traspassado por nossos pecados.

   Fixemos nossos olhos no sangue de Cristo para compreender como é precioso a seu Pai porque, derramado para a nossa salvação, dispensou ao mundo inteiro a graça do arrependimento.

  Depois da Páscoa, o Espírito Santo “estabelecerá a culpabilidade do mundo a respeito do pecado” (Jo 16,8-9), a saber, que o mundo não acreditou naquele que o Pai enviou. Mas esse mesmo Espírito, que revela o pecado, é o Consolador que dá ao coração do homem a graça do arrependimento e da conversão.


Santidade de Deus                                                                                                                                          66

V. AS MÚLTIPLAS FORMAS DA PENITÊNCIA NA VIDA CRISTÃ


  A penitência interior do cristão pode ter expressões bem variadas. A escritura e os padres insistem principalmente em três formas: o jejum, a oração e a esmola, que exprimem a conversão com relação a si mesmo, a Deus e aos outros. Ao lado da purificação radical operada pelo batismo ou pelo martírio, citam, como meio de obter o perdão dos pecados, os esforços empreendidos para reconciliar-se com o próximo, as lágrimas de penitência, , a preocupação com a salvação do próximo, a intercessão dos santos e a prática da caridade, “que cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4,8).
  A conversão se realiza na vida cotidiana através de gestos de reconciliação, do cuidado dos pobres, do exercício e da defesa da justiça e do direito, pela confissão das faltas aos irmãos, pela correção fraterna, pela revisão de vida, pelo exame de consciência, pela direção espiritual, pela, aceitação dos sofrimentos, pela firmeza na perseguição por causa da justiça. Tomar sua cruz, cada dia, e seguir a Jesus é o caminho mais seguro da penitência.
  Eucaristia e penitência. A conversão e a penitência cotidiana encontram sua fonte e seu alimento na Eucaristia, pois nela se torna presente o sacrifício de Cristo que nos reconciliou com Deus; por ela são nutridos e fortalecidos aqueles que vivem da vida de Cristo: ela é o antídoto que nos liberta de nossas faltas cotidianas e nos preserva dos pecados mortais”.
  A leitura da Sagrada Escritura, a oração da Liturgia das Horas e do Pai-nosso, todo ato sincero de culto ou de piedade reaviva em nós o espírito de conversão e de penitência e contribui para o perdão dos pecados.
  Os tempos e os dias de penitência ao longo do ano litúrgico (o tempo da quaresma, cada sexta-feira da quaresma em memória da morte do Senhor) são momentos fortes da prática penitencial da Igreja. Esses tempos são particularmente apropriados aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às peregrinações em sinal de penitência, às privações voluntárias como o jejum e a esmola, à partilha fraterna (obras de caridade e missionárias).


Santidade de Deus                                                                                                                                          67

  O dinamismo da conversão e da penitência foi maravilhosamente descrito por Jesus na parábola do “filho pródigo”, cujo centro é “o pai misericordioso” (cf. Lc 15,11-24): o fascínio de uma liberdade ilusória, o abandono da casa paterna; a extrema miséria em que se encontra o filho depois de esbanjar sua fortuna; a profunda humilhação de ver-se obrigado a cuidar dos porcos e, pior ainda, de querer matar a fome com a sua ração; a reflexão sobre os bens perdidos; o arrependimento  a decisão de declarar-se culpado diante do pai; o caminho de volta; o generoso acolhimento da parte do pai; a alegria do pai: tudo isso são traços específicos do processo de conversão. A bela túnica, o anel e o banquete da festa são símbolos desta nova vida, pura, digna, cheia de alegria, que é a vida do homem que volta a Deus e ao seio de sua família, que é a Igreja. Só o coração de Cristo que conhece as profundezas do amor do Pai pôde revelar-nos o abismo de sua misericórdia de uma maneira tão simples e tão bela.

VI. O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO


  O pecado é antes de tudo uma ofensa a Deus, uma ruptura da comunhão com ele. Ao mesmo tempo é um atentado à comunhão com a Igreja. Por isso, a conversão traz simultaneamente o perdão de Deus e a reconciliação com a Igreja, o que é expresso e realizado liturgicamente pelo sacramento da Penitência e da Reconciliação.

SÓ DEUS PERDOA OS PECADOS

  Só Deus perdoa os pecados. Por ser o Filho de Deus, Jesus diz de si mesmo: “O Filho do homem tem poder de perdoar pecados na terra” (Mc 2,10) e exerce esse poder divino: “Teus pecados estão perdoados!” (Mc 2,5; Lc 7,48). Mais ainda: em virtude de sua autoridade divina, transmite esse poder aos homens para que o exerçam em seu nome.


Santidade de Deus                                                                                                                                          68

  A vontade de Cristo é que toda a sua Igreja seja, na oração, na sua vida e sua ação, o sinal e instrumento do perdão e da reconciliação que “ele nos conquistou ao preço de seu sangue”. Mas confiou o exercício do poder de absolvição ao ministério apostólico, encarregado do “ministério da reconciliação” (2Cor 5,18). O apóstolo é enviado “em nome de Cristo”, e “é o próprio Deus” que, através dele, exorta e suplica: “Reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,20).

RECONCILIAÇÃO COM A IGREJA

  Durante sua vida pública, Jesus não só perdoou ao pecados, mas também manifestou o efeito desse perdão: reintegrou os pecadores perdoados na comunidade do povo de Deus, da qual o pecado os havia afastado ou até excluído. Um sinal evidente disso é o fato de Jesus admitir os pecadores à sua mesa e, mais ainda, de Ele mesmo sentar-se à sua mesa, gesto que exprime de modo estupendo ao mesmo tempo o perdão de Deus e o retorno ao seio do Povo de Deus.
  Conferindo aos apóstolos seu próprio poder de perdoar os pecados, o Senhor também lhes dá a autoridade de reconciliar os pecadores com a Igreja. Esta dimensão eclesial de sua tarefa exprime-se principalmente na solene palavra de Cristo a Simão Pedro: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19). “O múnus de ligar e desligar, que foi dado a Pedro, consta que também foi dado ao colégio dos apóstolos, unido a seu chefe (cf. Mt 18,18; 28, 16-20)”.
  As palavras ligar e desligar significam: aquele que excluirdes da vossa comunhão, será excluído da comunhão com Deus; aquele que receberdes de novo na vossa comunhão, Deus o acolherá também na sua. A reconciliação com a Igreja é inseparável da reconciliação com Deus.


Santidade de Deus                                                                                                                                          69

O SACRAMENTO DO PERDÃO

  Cristo instituiu o sacramento de Penitência para todos os membros pecadores de sua Igreja, antes de tudo para aqueles que, depois do Batismo, cometeram pecado grave e com isso perderam a graça batismal e feriram a comunhão eclesial. É a eles que o sacramento da Penitência oferece uma nova possibilidade de converter-se e de recobrar a graça justificação. Os Padres da Igreja apresentam este sacramento como “a segunda tábua (de salvação) depois do naufrágio que é a perda da graça”.

  No curso dos séculos, a forma concreta segundo a qual a Igreja exerceu este poder recebido do Senhor variou muito. Nos primeiros séculos, a reconciliação dos cristãos que haviam cometido pecados particularmente graves depois do Batismo (por exemplo, a idolatria, o homicídio ou o adultério) estava ligada a uma disciplina bastante rigorosa, segundo a qual os penitentes deviam fazer penitência pública por seus pecados, muitas vezes durante longos anos, antes de receber a reconciliação. A esta “ordem dos penitentes” (que incluía apenas certos pecados graves) só se era admitido raramente e, em certas regiões, só uma vez na vida. No século VII, inspirados na tradição monástica do Oriente, os missionários irlandeses trouxeram para a Europa continental a prática “privada” da penitência que não mais exigia a prática pública e prolongada de obras de penitência antes de receber a reconciliação com a Igreja. O sacramento se realiza daí em diante de uma forma mais secreta entre o penitente e o presbítero. Esta nova prática previa a possibilidade da repetição, abrindo assim o caminho para uma freqüência regular a este sacramento. Permitia integrar numa única celebração sacramental o perdão dos pecados graves e dos pecados veniais. Em linhas gerais, é essa a forma de penitência que é praticada na Igreja até hoje.

  Através das mudanças por que passaram a disciplina e a celebração deste sacramento ao longo dos séculos, podemos discernir sua própria estrutura fundamental que consta de dois elementos igualmente essenciais:


Santidade de Deus                                                                                                                                          70

 de um lado, os atos do homem que se converte sob a ação do Espírito Santo, a saber, a contrição, a confissão e a satisfação; de outro lado, a ação de Deus por intermédio da Igreja. A Igreja que, pelo Batismo e seus presbíteros, concede, em nome de Jesus Cristo, o perdão dos pecados e fixa a modalidade da satisfação, ora pelo pecador e faz penitência com ele. Assim o pecador é curado e reintegrado na comunhão eclesial.
  A fórmula da absolvição em uso na Igreja latina exprime os elementos essenciais deste sacramento: o Pai das misericórdias é a fonte de todo perdão. Ele opera a reconciliação dos pecadores pela páscoa de seu Filho e pelo dom de seu Espírito, através da oração e ministério da Igreja:

   Deus, Pai de misericórdia, que, pela Morte e Ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

VII. OS ATOS DO PENITENTE


  A penitência impele o pecador a suportar tudo de boa vontade. Em seu coração está o arrependimento; em sua boca, a acusação; em suas obras, plena humildade e proveitosa satisfação.

A CONTRIÇÃO

  Entre os atos do penitente, a contrição vem em primeiro lugar. Consiste “numa dor da alma e detestação do pecado cometido, com a resolução de não mais pecar no futuro”.
  Quando brota do amor de Deus, amado acima de tudo, a contrição é “perfeita” (contrição de caridade). Esta contrição perdoa as faltas veniais e obtém também o perdão dos pecados mortais, se incluir a firme resolução de recorrer, quando possível, à confissão sacramental.


Santidade de Deus                                                                                                                                          71

  A contrição chamada “imperfeita” (ou “atrição”) também é um dom de Deus, um impulso do Espírito Santo. Nasce da consideração do peso do pecado ou do temor da condenação eterna e de outras penas que ameaçam o pecador (contrição por temor). Este abalo da consciência pode ser o início de uma evolução interior que será concluída sob a ação da graça, pela absolvição sacramental. Por isso mesma, porém, a contrição imperfeita não obtém o perdão dos pecados graves, mas predispõe a obtê-lo no sacramento da penitência.

  Convém preparar a recepção deste sacramento fazendo um exame de consciência à luz da Palavra de Deus. Os textos mais adaptados a esse fim devem ser procurados na catequese moral dos evangelhos e das cartas apostólicas: Sermão da Montanha, ensinamentos apostólicos.

A CONFISSÃO DOS PECADOS

  A confissão dos pecados (acusação), mesmo do ponto de vista simplesmente humano, liberta-nos e facilita nossa reconciliação com os outros. Pela acusação, o homem encara de frente os pecados dos quais se tornou culpado: assume a responsabilidade deles e, assim, abre-se de novo a Deus e à comunhão da Igreja, a fim de tornar possível um futuro novo.
  A declaração dos pecados ao sacerdote constitui uma parte essencial do sacramento da penitência: “Os penitentes devem, na confissão, enumerar todos os pecados mortais de que têm consciência depois de examinar-se seriamente, mesmo que esses pecados sejam muito secretos e tenham sido cometidos somente contra os dois últimos preceitos do decálogo, pois às vezes esses pecados ferem gravemente a alma e são mais prejudiciais do que os outros que foram cometidos à vista e conhecimento de todos”.

  Quando os cristãos se esforçam para confessar todos os pecados que lhes vêm à memória, não se pode duvidar que tenham o intuito de apresentá-los todos ao perdão da misericórdia divina. Os que agem de outra forma tentando ocultar conscientemente alguns pecados não colocam diante da bondade divina nada que ela possa remir por intermédio do sacerdote. Pois, “se o doente insistir em esconder do médico sua ferida, como poderá a medicina curá-lo”?


Santidade de Deus                                                                                                                                          72

  Conforme o mandamento da Igreja, “todo fiel, depois de ter chegado à idade da discrição, é obrigado a confessar fielmente seus pecados graves, pelo menos uma vez por ano”. Aquele que tem consciência de ter cometido um pecado mortal não deve receber a Sagrada Comunhão, mesmo que esteja profundamente contrito, sem receber previamente a absolvição sacramental, a menos que tenha um motivo grave para comungar e lhe seja impossível chegar a um confessor. As crianças devem confessar-se antes de receber a Primeira eucaristia.

  Apesar de não ser estritamente necessária, a confissão das faltas contidas (pecado venial) é vivamente recomendada pela Igreja. Com efeito, a confissão regular dos nossos pecados nos ajuda a formar a consciência, a lutar contra nossas más tendências, a ver-nos curados por Cristo, a progredir na vida do Espírito. Recebendo mais freqüentemente, através deste sacramento, o dom da misericórdia do Pai, somos levados a ser misericordiosos com ele:

   Quem confessa os próprios pecados está agindo em harmonia com Deus. Deus acusa teus pecados; se tu também os acusas, tu te associas a Deus. O homem e o pecador são por assim dizer duas realidades: quando ouves falar do homem, foi Deus quem o fez; quando ouves falar do pecador, é o próprio homem quem o fez. Destróis o que fizeste para que Deus salve o que ele fez... Quando começas a detestar o que fizeste, é então que tuas boas obras começam, porque acusas tuas más obras. A confissão das más obras é o começo das boas obras. Contribuis para a verdade e consegues à luz.

A SATISFAÇÃO

  Muitos pecados prejudicam o próximo. É preciso fazer o possível para reparar esse mal (por exemplo: restituir as coisas roubadas, restabelecer a reputação daquele que foi caluniado, compensar as ofensas e injúrias). A simples justiça exige isso. Mas, além disso, o pecado fere e enfraquece o próprio pecador, como também suas relações com Deus e com o próximo.


Santidade de Deus                                                                                                                                          73

 A absolvição tira o pecado, mas não remedia todas as desordens que ele causou. Liberto do pecado, o pecador deve ainda recobrar a plena saúde espiritual. Deve, portanto, fazer alguma coisa a mais para reparar seus pecados: deve “satisfazer” de modo apropriado ou “expiar” seus pecados. Esta satisfação chama-se também “penitência”.
  A penitência imposta pelo confessor deve levar em conta a situação pessoal do penitente e procurar seu bem espiritual. Deve corresponder, na medida do possível, à gravidade e à natureza dos pecados cometidos. Pode consistir na oração, numa oferta, em obras de misericórdia, no serviço do próximo, em privações voluntárias, sacrifícios e principalmente na aceitação paciente da cruz que temos de carregar. Essas penitências nos ajudam a configurar-nos com Cristo que, sozinho, expiou nossos pecados uma vez por todas. Permitem-nos também tornar-nos co-herdeiros de Cristo ressuscitado, “pois sofremos com ele”:

   Mas nossa satisfação, aquela que pagamos pelos nossos pecados, só vale por Jesus Cristo: pois não podendo coisa alguma por nós mesmos, “tudo podemos com a cooperação daquele que nos conforta” (Fl 4,13). E assim não tem o homem de que se gloriar, mas toda a nossa “glória” está em Cristo... em quem oferecemos satisfação, “produzindo dignos frutos de penitência” (Lc 3,8), que dele tiram a sua virtude, por ele são oferecidos ao Pai e por ele aceitos pelo Pai.

VIII. O MINISTRO DESTE SACRAMENTO

  Como Jesus confiou aos seus apóstolos o ministério da Reconciliação, os Bispos, seus sucessores, e os presbíteros, colaboradores dos Bispos, continuam a exercer esse ministério. De fato, são os Bispos e os presbíteros que têm, em virtude do sacramento da Ordem, o poder de perdoar todos os pecados “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.
  O perdão dos pecados reconcilia com Deus mas também com a Igreja. O Bispo, chefe visível da Igreja Particular, é portanto considerado, com plena razão, desde os tempos primitivos, como aquele que principalmente detém o poder e o ministério da reconciliação: ele é o moderador da disciplina penitencial.


Santidade de Deus                                                                                                                                          74

Os presbíteros, seus colaboradores, o exercem na medida em que receberam o múnus, quer de seu Bispo (ou de um superior religioso), quer do Papa, através do direito da Igreja.

  Alguns pecados particularmente graves são passíveis de excomunhão, a pena eclesiástica mais severa, que impede a recepção dos sacramentos e o exercício de certos atos eclesiais. Neste caso a absolvição não pode ser dada, segundo o direito da Igreja, a não ser pelo Papa, pelo Bispo local ou por presbíteros autorizados por eles. E caso de perigo de morte, qualquer sacerdote, mesmo privado da faculdade de ouvir confissões, pode absolver de qualquer pecado e de qualquer excomunhão.

  Os sacerdotes devem incentivar os fiéis a receber o sacramento da Penitência e devem mostrar-se disponíveis a celebrar este sacramento cada vez que os cristãos o pedirem de um modo conveniente.
  Ao celebrar o sacramento da Penitência, o sacerdote cumpre o ministério do bom pastor, que busca a ovelha perdida; do bom samaritano, que cura as feridas; do Pai que espera o filho pródigo e o acolhe ao voltar; do justo juiz que não faz acepção de pessoa e cujo julgamento é justo e misericordioso ao mesmo tempo. Em suma, o sacerdote é o sinal e o instrumento do amor misericordioso de Deus para com o pecador.
  O confessor não é o Senhor, mas o servo do perdão de Deus. O ministro deste sacramento deve unir-se à intenção e à caridade de Cristo. Deve possuir um comprovado conhecimento do comportamento cristão, experiência das coisas humanas, respeito e delicadeza diante daquele que caiu; deve amar a verdade, ser fiel ao magistério da Igreja e conduzir, com paciência, o penitente à cura e à plena maturidade. Deve orar e fazer penitência por ele, confiando-o à misericórdia do Senhor.
  Diante da delicadeza e grandiosidade deste ministério e do respeito que se deve às pessoas, a Igreja declara que todo sacerdote que ouve confissões é obrigado a guardar segredo absoluto a respeito dos pecados que seus penitentes lhe confessaram, sob penas severíssimas.


Santidade de Deus                                                                                                                                          75

 Também não pode fazer uso do conhecimento da vida dos penitentes adquirido pela confissão. Esse sigilo, que não admite exceções, chama-se “sigilo sacramental”, porque o que o penitente manifestou ao sacerdote permanece “selado” pelo sacramento.

IX. OS EFEITOS DESTE SACRAMENTO

  “Toda a força da Penitência reside no fato de ela nos reconstituir na graça de Deus e de nos unir a ele com a máxima amizade”. Portanto a finalidade e o efeito deste sacramento é a reconciliação com Deus. Os que recebem o sacramento da Penitência com coração contrito e disposição religiosa “podem usufruir a paz e tranqüilidade da consciência, que vem acompanhada de uma intensa consolação espiritual”. Com efeito, o sacramento da Reconciliação com Deus traz consigo uma verdadeira “ressurreição espiritual”, uma restituição da dignidade e dos bens da vida dos filhos de Deus, entre os quais o mais precioso é a amizade de Deus (Lc 15,32).
  Este sacramento nos reconcilia com a Igreja. O pecado rompe ou quebra a comunhão fraterna. O sacramento da Penitência a repara ou restaura. Neste sentido, ele não cura apenas aquele que é restabelecido na comunhão eclesial, mas tem também um efeito vivificante sobre a vida da Igreja, que sofreu com o pecado de um de seus membros. Restabelecido ou confirmado na comunhão dos santos, o pecador sai fortalecido pela participação dos bens espirituais de todos os membros vivos do Corpo de Cristo, quer estejam ainda em estado de peregrinação, quer já estejam na pátria celeste:

   Não devemos esquecer que a reconciliação com Deus tem como conseqüência, por assim dizer, outras reconciliações capazes de remediar outras rupturas ocasionadas pelo pecado: o penitente perdoado reconcilia-se consigo mesmo no íntimo mais profundo de seu ser, onde recupera a própria verdade interior; reconcilia-se com os irmãos que de alguma maneira ofendeu e feriu; reconcilia-se com a Igreja; e reconcilia-se com toda a criação.


Santidade de Deus                                                                                                                                          76

  Neste sacramento, o pecador, entregando-se ao julgamento misericordioso de Deus, antecipa de certa maneira o julgamento a que será sujeito no fim desta vida terrestre. Pois é agora, nesta vida, que nos é oferecida a escolha entre a vida e a morte, e só pelo caminho da conversão poderemos entrar no Reino do qual somos excluídos pelo pecado grave. Convertendo-se a Cristo pela penitência e pela fé, o pecador passa da morte para a vida “sem ser julgado” (Jo 5,24).

X. AS INDULGÊNCIAS


  A doutrina e a prática das indulgências na Igreja estão estreitamente ligadas aos efeitos do sacramento da penitência.

QUE É A INDULGÊNCIA?

  “A indulgência é a remissão, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados já perdoados quanto à culpa, que o fiel bem disposto obtém em certas condições determinadas, pela intervenção da Igreja que, como dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos”.
  “A indulgência é parcial ou plenária, conforme liberar parcial ou totalmente da pena devida pelos pecados”. As indulgências podem aplicar-se aos vivos e aos defuntos.

AS PENAS DO PECADO

  Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, é preciso admitir que o pecado tem uma dupla conseqüência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, conseqüentemente, nos torna incapazes da vida eterna; esta privação se chama “pena eterna” do pecado. Por outro lado, todo pecado, mesmo venial, acarreta um apego prejudicial às criaturas que exige purificação, quer aqui na terra, quer depois da morte, no estado chamado purgatório.


Santidade de Deus                                                                                                                                          77

 Esta purificação liberta da chamada “pena temporal” do pecado. Essas duas penas não devem ser concebidas como uma espécie de vingança infligida por Deus do exterior, mas antes como uma conseqüência da própria natureza do pecado. Uma conversão que procede de uma ardente caridade pode chegar à total purificação do pecador, não subsistindo mais nenhuma pena.
  O perdão do pecado e a restauração da comunhão com Deus implicam a remissão das penas eternas do pecado. Mas permanecem as penas temporais do pecado. O cristão deve esforçar-se, suportando pacientemente  os sofrimentos e as provas de todo tipo e, chegada a hora de enfrentar serenamente a morte, aceitar como uma graça essas penas temporais do pecado; deve aplicar-se, através de obras de misericórdia e de caridade, como também pela oração de diversas práticas de penitência, a despojar-se completamente do “velho homem” para revestir-se do “homem novo”.

NA COMUNHÃO DOS SANTOS

  O cristão que procura purificar-se de seu pecado e santificar-se com o auxílio da graça de Deus não está só. “A vida de cada um dos filhos de Deus em Cristo e por Cristo se acha unida por admirável laço à vida de todos os outros irmãos cristãos na sobrenatural unidade do corpo místico de Cristo, como uma única pessoa mística”.
  Na comunhão dos santos “existe certamente entre os fiéis já admitidos na pátria celeste, os que expiam as faltas no purgatório e os que ainda peregrina na terra, um laço de caridade e um amplo intercâmbio de todos os bens”. Neste admirável intercâmbio, cada um se beneficia da santidade dos outros, bem para além do prejuízo que o pecado de um possa ter causado aos outros. Assim, o recurso à comunhão dos santos permite ao pecador contrito ser purificado, mais cedo e mais eficazmente, das penas do pecado.


Santidade de Deus                                                                                                                                          78

  Esses bens espirituais da comunhão dos santos também são chamados o tesouro da Igreja, “que não é uma soma de bens comparáveis às riquezas materiais acumuladas no decorrer dos séculos, mas é o valor infinito e inesgotável que têm junto a Deus as expiações e os méritos de Cristo nosso Senhor, oferecidos para que a humanidade toda seja libertada do pecado e chegue à comunhão com o Pai. É em Cristo, nosso redentor, que se encontram em abundância as satisfações e os méritos de sua redenção”.
  “Pertence além disso a esse tesouro o valor verdadeiramente imenso e incomensurável e sempre novo que têm junto a Deus as preces e as boas obras da Bem-aventurada Virgem Maria e de todos os santos que, seguindo as pegadas de Cristo Senhor, por sua graça se santificaram e totalmente acabaram a obra que o Pai lhes confiara; de sorte que, operando a própria salvação, também contribuíram para a salvação de seus irmãos na unidade do corpo místico”.

OBTER A INDULGÊNCIA DE DEUS PELA IGREJA

  A indulgência se obtém pela Igreja que, em virtude do poder de ligar e desligar que Cristo Jesus lhe concedeu, intervém em favor do cristão, abrindo-lhe o tesouro dos méritos de Cristo e dos santos para obter do Pai das misericórdias a remissão das penas temporais devidas aos seus pecados. Assim a Igreja não só vem em auxílio do cristão, mas também o incita a obras de piedade, de penitência e de caridade.
  Uma vez que os fiéis defuntos em vias de purificação também são membros da mesma comunhão dos santos, podemos ajudá-los obtendo para eles indulgências, para libertação das penas temporais devidas por seus pecados.

XI. A CELEBRAÇÃO DO SACRAMENTO DA PENITÊNCIA


  Como todos os sacramentos, a Penitência é uma ação litúrgica. São esses ordinariamente os elementos da celebração: saudação e bênção do sacerdote,


Santidade de Deus                                                                                                                                          79

 leitura da palavra de Deus para iluminar a consciência e suscitar a contrição, exortação ao arrependimento; confissão que reconhece os pecados e os declara ao padre; imposição e aceitação da penitência; absolvição do sacerdote; louvor de ação de graças e despedida com a bênção do sacerdote.

  A liturgia bizantina conhece diversas fórmulas de absolvição, de forma deprecativa, que exprimem admiravelmente o mistério do perdão: “Que o Deus que pelo profeta Natã perdoou a Davi que confessou seus próprios pecados, a Pedro quando chorou amargamente, à prostituta quando lavou seus pés com lágrimas, ao fariseu e ao filho pródigo, que esse mesmo Deus vos perdoe, por mim, pecador, nesta vida e na outra, e que vos faça comparecer ao seu terrível tribunal sem vos condenar. Ele que é bendito nos séculos dos séculos. Amém”.

  O sacramento da Penitência também pode ter lugar no quadro de uma celebração comunitária, na qual as pessoas se preparam juntas para a confissão e também juntas agradecem pelo perdão recebido. Neste caso a confissão pessoal dos pecados e a absolvição individual são inseridas numa liturgia da palavra de Deus, com leituras e homilia, exame de consciência em comum, pedido comunitário de perdão, oração do “Pai-Nosso” e ação de graças em comum. Esta celebração comunitária exprime mais claramente o caráter eclesial da penitência. Mas, seja qual for o modo da celebração, o sacramento da penitência sempre é, por sua própria natureza, uma ação litúrgica, portanto eclesial e pública.
  Em casos de necessidade grave, pode-se recorrer à celebração comunitária da reconciliação com confissão e absolvição gerais. Esta necessidade grave pode apresentar-se quando há um perigo iminente de morte sem que o ou os sacerdotes tenham tempo suficiente para ouvir a confissão de cada penitente. A necessidade grave pode também apresentar-se quando, tendo-se em vista o número dos penitentes, não havendo confessores suficientes para ouvir devidamente as confissões individuais num tempo razoável,de modo que os penitentes, sem culpa de sua parte, se veriam privados durante muito tempo da graça sacramental ou da sagrada Eucaristia. Neste caso os fiéis devem ter, para a validade da absolvição, o propósito de confessar individualmente seus pecados no devido tempo.


Santidade de Deus                                                                                                                                          80

 Cabe ao Bispo diocesano julgar se os requisitos para a absolvição geral existem. Um grande concurso de fiéis por ocasião das grandes festas ou de peregrinação não constitui caso de tal necessidade grave.
  “A confissão individual e integral seguida da absolvição continua sendo o único modo ordinário pelo qual os fiéis se reconciliam com Deus e com a Igreja, salvo se uma impossibilidade física ou moral dispensar desta confissão”. Há razões profundas para isso. Cristo age em cada um dos sacramentos. Dirige-se pessoalmente a cada um dos pecadores: “Filho, os teus pecados estão perdoados” (Mc 2,5); ele é o médico que debruça sobre cada um dos doentes que têm necessidade dele para curá-los; ele os soergue e reintegra na comunhão fraterna. A confissão pessoal é pois a forma mais significativa da reconciliação com Deus e com a Igreja.

RESUMINDO

   “Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: Recebei o Espírito Santo; aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes, ser-lhes-ão retidos” (Jo 20,22-23).
   O perdão dos pecados cometidos após o Batismo é concedido por um sacramento próprio chamado sacramento da Conversão, da Confissão, da Penitência ou da Reconciliação.
   Quem peca fere a honra de Deus e seu amor, sua própria dignidade de homem chamado a ser filho de Deus e a saúde espiritual da Igreja, da qual cada cristão é uma pedra viva.
   Aos olhos da fé, nenhum mal é mais grave do que o pecado, e nada tem conseqüências piores para os próprios pecadores, para a Igreja e para o mundo inteiro.
   Voltar a comunhão com Deus depois de a ter perdido pelo pecado é um movimento que nasce da graça do Deus misericordioso e solícito pela salvação dos homens. É preciso pedir esse dom precioso para si mesmo como também para os outros.
   O movimento de volta a Deus, chamado conversão e arrependimento, implica uma dor e uma aversão aos pecados cometidos e o firme propósito de não mais pecar no futuro. A conversão atinge portanto o passado e o futuro; nutre-se da esperança na misericórdia divina.

Santidade de Deus                                                                                                                                          81

   O sacramento da Penitência é constituído de três atos do penitente, e da absolvição dada pelo sacerdote. Os atos do penitente são: o arrependimento, a confissão ou declaração dos pecados ao sacerdote e o propósito de cumprir a penitência e as obras de reparação.
   O arrependimento (também chamado contrição) deve inspirar-se em motivos que decorrem da fé. Se o arrependimento estiver embasado no amor de caridade para com Deus, é chamado “perfeito”; se estiver fundado em outros motivos, será “imperfeito”.
   Aquele que quiser obter a reconciliação com Deus e com a Igreja deve confessar ao sacerdote todos os pecados graves que ainda não confessou e de que se lembra depois de examinar cuidadosamente sua consciência. Mesmo sem ser necessária em si a confissão das faltas veniais, a Igreja não deixa de recomendá-la vivamente.
   O confessor propõe ao penitente o cumprimento de certos atos de “satisfação” ou de “penitência”, para reparar o prejuízo causado pelo pecado e restabelecer os hábitos próprios ao discípulo de Cristo.
   Somente os sacerdotes que receberam da autoridade da Igreja a faculdade de absolver podem perdoar os pecados em nome de Cristo.
   Os efeitos espirituais do sacramento da Penitência são:
- a reconciliação com Deus, pela qual o penitente recobra a graça;
- a reconciliação com a Igreja;
- a remissão da pena eterna divida aos pecados mortais;
- a remissão, pelo menos em parte, das penas temporais, seqüelas do pecado;
- a paz e a serenidade da consciência, e a consolação espiritual;
- o acréscimo de forças espirituais para o combate cristão.
   A confissão individual e integral dos pecados graves, seguida da absolvição, continua sendo o único meio ordinário de reconciliação com Deus e com a Igreja.
   Pelas indulgências, os fiéis podem obter para si mesmos e também para as almas do Purgatório, a remissão das penas temporais, seqüelas dos pecados.


TERCEIRA PARTE


A VIDA EM CRISTO

  “CRISTÃO, reconhece a tua dignidade. Por participares agora da natureza divina, não te degeneres retornando à decadência de tua vida passada. Lembra-te da CABEÇA a que pertences e do CORPO de que és membro. Lembra-te de que foste arrancado do poder das trevas e transferido para a luz e o REINO de DEUS”.


Santidade de Deus                                                                                                                                          82

  o Símbolo da fé professou a grandeza dos dons de Deus na obra de sua criação e, mais ainda, pela redenção e santificação. O que a fé confessa os sacramentos comunicam: pelos “sacramentos que os fizeram renascer”, os cristãos se tornaram “filhos de Deus” (Jo1,12; 1Jo 3,1), “participantes de natureza divina” (2Pd 1,4). Reconhecendo na fé sua nova dignidade, os cristãos são chamados a levar a partir de então uma “vida digna do Evangelho de Cristo” (Fl 1,27). Pelos sacramentos e pela oração, recebem a graça de Cristo e os dons de seu Espírito que os tornam capazes disso.
  Jesus Cristo sempre fez o que era do agrado do Pai. Sempre viveu em perfeita comunhão com ele. Também os discípulos são convidados a viver sob o olhar do Pai “que vê o que está oculto”, para se tornarem “perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
  Incorporados a Cristo pelo Batismo, os cristãos estão “mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6,11), participando assim da vida do Ressuscitado. Seguindo a Cristo e em união com ele, podem “tornar-se imitadores de Deus como filhos amados e andar no amor” (Ef 5,1), conformando seus pensamentos, palavras e ações aos “sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5) e seguindo seus exemplos.
  “Justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus” (1Cor 6,11), “santificados... chamados a ser santos” (1Cor 1,2), os cristãos se tornaram “templo do Espírito Santo”. Esse “Espírito do Filho” os ensina a orar ao Pai e, tendo-se tornado sua vida, os faz agir para carregarem em si “o fruto do Espírito” (Gl 5,22) pela caridade operante. Curando as feridas do pecado, o Espírito Santo os “renova pela transformação espiritual de nossa mente” (Ef 4,23), ele nos ilumina e purifica para vivermos como “filhos da luz” (Ef 5,8) na “bondade, justiça e verdade” em todas as coisas (Ef 5,9).


Santidade de Deus                                                                                                                                          83

  O caminho de Cristo “conduz à vida”, um caminho contrário “leva à perdição”. A parábola evangélica dos dois caminhos está sempre presente na catequese da Igreja. Significa a importância das decisões morais para nossa salvação. “Há dois caminhos, um da vida e outro da morte; mas entre os dois há grande diferença”.
  Importa, na catequese, revelar com toda clareza a alegria e as exigências do caminho de Cristo. A catequese da “vida nova” (Rm 6,4) em Cristo.

   Peço que considereis que Jesus Cristo nosso Senhor é vossa verdadeira Cabeça e que vós sois um de seus membros. Ele é para vós o que a Cabeça é para os membros; tudo que é dele é vosso, seu espírito, coração, corpo, alma e todas as suas faculdades, e deveis fazer uso disso como coisa vossa para servir, louvar, amar e glorificar a Deus. Vós sois em relação a ele o que os membros são em relação à cabeça. Assim, ele deseja fazer uso de tudo o que está em vós para o serviço e a glória de seu Pai, como coisa sua. Para mim viver é Cristo (Fl 1,21(.


CAPÍTULO III

A SALVAÇÃO DE DEUS:

A LEI E A GRAÇA


  Chamado à felicidade, mas ferido pelo pecado, o homem tem necessidade da salvação de Deus. o socorro divino lhe é dado em Cristo pela lei que o dirige e na graça que o sustenta:
  Trabalhai para vossa salvação com temor e tremor, pois é Deus quem, segundo e sua vontade, realiza em vós o querer e o fazer (Fl 2,12-13).

ARTIGO 3

A IGREJA, MÃE E EDUCADORA

  É em Igreja, em comunhão com todos os batizados, que o cristão realiza a sua vocação. Da Igreja recebe a palavra de Deus, que contém os ensinamentos da “lei de Cristo” (Gl 6,2).


Santidade de Deus                                                                                                                                          84

 Da Igreja recebe a graça dos sacramentos, que o sustenta “no caminho”. Da Igreja aprende o exemplo da santidade; reconhece a sua figura e a sua fonte em Maria, a Virgem Santíssima; discerne-a no testemunho autêntico daqueles que a vivem, descobre-a na tradição espiritual e na longa história dos santos que o precederam e que a Liturgia celebra no ritmo do Santoral.
  A vida moral é um culto espiritual. “Oferecemos nossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus”, no seio do corpo de Cristo que formamos, e em comunhão com a oferta de sua Eucaristia. Na Liturgia e na celebração dos sacramentos, oração e doutrina se conjugam com a graça de Cristo para iluminar e alimentar o agir cristão. Como o conjunto da vida cristã, da mesma forma a vida moral encontra a sua fonte e seu ponto culminante no sacrifício eucarístico.

I. VIDA MORAL E MAGISTÉRIO DA IGREJA


  A Igreja, “coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15), “recebeu dos Apóstolos o solene mandamento de Cristo de pregar a verdade da salvação”. “Compete à Igreja anunciar sempre e por toda parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas”.
  O magistério dos pastores da Igreja em matéria moral se exerce ordinariamente na catequese e na pregação, com o auxílio das obras dos teólogos e dos autores espirituais. assim se foi transmitido de geração em geração, sob a égide e a vigilância dos pastores, o “depósito” da moral cristã, composto de um conjunto característico de regras, mandamentos e virtudes que procedem da fé em Cristo e são vivificados pela caridade. Esta catequese tem tradicionalmente tomado por base, ao lado do Credo e do Pater, o Decálogo que enuncia os princípios da vida moral, válidos para todos os homens.


Santidade de Deus                                                                                                                                          85

  O romano pontífice e os bispos “são os doutores autênticos dotados da autoridade de Cristo, que pregam ao povo a eles confiado a fé que deve ser crida e praticada”. O magistério ordinário e universal do Papa e dos Bispos em comunhão com ele ensina aos fiéis a verdade que se deve crer, a caridade que se deve praticar, a felicidade que se pode esperar.
  O grau supremo da participação na autoridade de Cristo é assegurado pelo carisma da infalibilidade. Esta tem a mesma extensão que o depósito da revelação divina; estende-se ainda a todos os elementos de doutrina, incluindo a moral, sem os quais as verdades salutares da fé não podem ser preservadas, expostas ou observadas.
  A autoridade do magistério se estende também aos preceitos específicos da lei natural, porque sua observância, exigida pelo Criador, é necessária para a salvação. Recordando as prescrições da lei natural, o Magistério da Igreja exerce parte essencial de sua função profética de anunciar aos homens o que são de verdade e recordar-lhes o que devem ser diante de Deus.
  A lei de Deus confiada à Igreja é ensinada aos fiéis como caminho de vida e verdade. Os fiéis têm portanto o direito de serem instruídos nos preceitos divinos salutares que purificam o juízo e, com a graça, curam a razão humana ferida. Têm o dever de observar as constituições e os decretos promulgados pela legítima autoridade da Igreja. Mesmo que sejam disciplinares, tais determinações exigem a docilidade na caridade.
  Na obra de ensinar e aplicar a moral cristã, a Igreja necessita de devotamento dos pastores, da ciência dos teólogos, da contribuição de todos os cristãos e de todos os homens de boa vontade. A fé e a prática do Evangelho proporcionam a cada fiel uma experiência de vida “em Cristo”, que o ilumina e o torna capaz de apreciar as realidades divinas e humanas segundo o Espírito de Deus. Assim é que o Espírito Santo pode servir-se dos mais humildes para iluminar os sábios e os constituídos em dignidade mais alta.

Santidade de Deus                                                                                                                                          86

  Os ministérios devem ser exercidos em um espírito de serviço fraterno e dedicação à Igreja, em nome do Senhor. Ao mesmo tempo, a consciência de cada fiel, no seu julgamento moral sobre os seus atos pessoais, deve evitar encerrar-se em uma consideração individual. Dará o melhor de si para se abrir à consideração do bem de todos, tal como ele se exprime na lei moral, natural e revelada, e por conseguinte na lei da Igreja e no ensino autorizado do Magistério da Igreja.
  Assim se pode desenvolver entre os fiéis cristãos um verdadeiro espírito filial para com a Igreja. Ele é o resultado normal do crescimento da graça batismal, que nos gerou no seio da Igreja e nos fez membros do Corpo de Cristo. Na sua solicitude materna, a Igreja nos concede a misericórdia de Deus que triunfa sobre todos os nossos pecados e age de modo especial no sacramento da Reconciliação. Como mãe solícita, ela nos prodigaliza também na sua Liturgia, dia após dia, o alimento da Palavra e da Eucaristia do Senhor.

II. OS MANDAMENTOS DA IGREJA


  Os mandamentos da Igreja situam-se nesta linha de uma vida moral ligada à vida litúrgica e que dela se alimenta. O caráter obrigatório dessas leis positivas promulgadas pelas autoridades pastorais tem como fim garantir aos fiéis o mínimo indispensável no espírito de oração e no esforço moral, no crescimento do amor de Deus e do próximo.

   O primeiro mandamento da Igreja (“Participar da missa inteira nos domingos e festas de guarda”) ordena aos fiéis que tomem parte da celebração eucarística em que se reúne a comunidade cristã, no dia que comemora a ressurreição do Senhor.
   O segundo mandamento (“Confessar-se ao menos uma vez por ano”) assegura a preparação para a Eucaristia pela recepção do sacramento da Reconciliação, que continua a obra de conversão e perdão do Batismo.
   O terceiro mandamento (“Comungar ao menos pela Páscoa da ressurreição”) garante um mínimo na recepção do Corpo e do Sangue do Senhor em ligações com as festas pascais, origem e centro da Liturgia Cristã.




Santidade de Deus                                                                                                                                          87

   O quarto mandamento (“Santificar as festas de preceito”) completa a observância dominical pela participação nas principais festas litúrgicas, que veneram os mistérios do Senhor, a Virgem Maria e os santos.
   O quinto mistério (“Jejuar e abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe Igreja”) determina os tempos de ascese e penitência que nos preparam para as festas litúrgicas; contribuem para nos fazer adquirir o domínio sobre os nossos instintos e a liberdade do coração.
   Os fiéis cristãos têm ainda a obrigação de atender, cada um segundo suas capacidades, às necessidades materiais da Igreja.

III. VIDA MORAL E TESTEMUNHO MISSIONÁRIO


  A fidelidade dos batizados é condição primordial para o anúncio do Evangelho e para a missão da Igreja no mundo. Para manifestar diante dos homens a sua força de verdade e de irradiação, a mensagem da salvação deve ser autenticada pelo testemunho de vida dos cristãos: “O próprio testemunho de vida cristã e as boas obras feitas em espírito sobrenatural possuem a força de atrair os homens para a fé e para Deus”.
  Por serem os membros do Corpo cuja Cabeça é Cristo, os cristãos contribuem pela constância de suas convicções e de seus costumes para a edificação da Igreja. A Igreja aumenta, cresce e se desenvolve pela santidade de seus fiéis, até que “alcancemos todos nós (...) o estado de homem perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4,13)
  Pela sua vida segundo Cristo, os cristãos apressam a vinda do Reino de Deus, do “Reino de justiça, da verdade e da paz”. Nem por isso se descuidam de suas obrigações terrestres: fiéis a seu Senhor e Mestre, eles as cumprem com retidão, com paciência e amor.

RESUMINDO

   A vida moral é um culto espiritual. O agir cristão se nutre da Liturgia e da celebração dos sacramentos.
   Os mandamentos da Igreja se referem à vida moral e cristã, unida à Liturgia, e dela se alimentam.


Santidade de Deus                                                                                                                                          88

  O Magistério dos pastores da Igreja em matéria moral se exerce ordinariamente na catequese e na pregação, tendo como base o Decálogo, que enuncia os princípios da vida moral, válidos para todos os homens.
   O romano pontífice e os bispos, como doutores autênticos, pregam ao povo de Deus a fé que deve ser crida e praticada nos costumes. Cabe-lhes igualmente pronunciar-se sobre as questões morais que caem dentro do âmbito da lei natural e da razão.
   A infalibilidade do Magistério dos pastores se estende a todos os elementos da doutrina, incluindo a moral. Sem esses elementos, as verdades salutares da fé não podem ser guardadas, expostas ou observadas.


OS DEZ MANDAMENTOS

ÊXODO 20,2-17
(1)
Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da servidão.

Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo da terra, ou nas águas que estão debaixo da terra.
Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porque eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e a quarta geração dos que me odeiam, e faço misericórdia até a milésima geração àqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(1)
Eu sou o Senhor teu Deus, aquele que te fez sair da terra do Egito, da casa da servidão.

Não terás outros deuses além de mim...

cic
(1)
Amar a Deus sobre todas as coisas


Santidade de Deus                                                                                                                                          89

ÊXODO 20,2-17
(2)
Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus, porque o senhor não deixará impune aquele que pronunciar em vão o seu nome.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(2)
Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus...

cic
(2)
Não tomar seu santo nome em vão.

ÊXODO 20,2-17
(3)
Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo.
Trabalharás durante seis dias, e farás todas as tuas obras. O sétimo dia, porém, é o sábado do Senhor teu Deus.
Não farás trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo nem tua escrava, nem teu animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas.
Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contém, mas repousou no sétimo dia; por isso o Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(3)
Guardarás o dia de sábado para santificá-lo...

cic
(3)
Guardar domingos e festas de guarda.

ÊXODO 20,2-17
(4)
Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(4)
Honrar teu pai e tua mãe...

cic
(4)
Honra pai e mãe.



Santidade de Deus                                                                                                                                          90


ÊXODO 20,2-17
(5)
Não matarás.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(5)
Não matarás.

cic
(5)
Não matar.

ÊXODO 20,2-17
(6)
Não cometerás adultério.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(6)
Não cometerás adultério.

cic
(6)
Não pecar contra a castidade.

ÊXODO 20,2-17
(7)
Não roubarás.


DEUTERONÔMIO 5,6-21
(7)

Não roubarás.

cic
(7)
Não furtar.

ÊXODO 20,2-17
(8)
Não apresentarás um falso testemunho contra o teu próximo.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(8)
Não apresentarás um falso testemunho contra o teu próximo.

cic
(8)
Não levantar falso testemunho.
.
ÊXODO 20,2-17
(9) e (10)
Não cobiçarás a casa de teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(9)
Não cobiçarás a mulher de teu próximo.

cic
(9)
Não desejar a mulher do próximo.

DEUTERONÔMIO 5,6-21
(10)
Não desejarás coisa alguma que pertença a teu próximo.

cic
(10)
Não cobiçar as coisas alheias.


Santidade de Deus                                                                                                                                          91


SEGUNDA SEÇÃO
OS DEZ MANDAMENTOS

MESTRE, QUE DEVO FAZER?...

  “Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna?” Ao jovem que faz esta pergunta Jesus responde primeiro invocando a necessidade de reconhecer a Deus como “o único bom”, como o bem por excelência e como a fonte de tudo bem. Depois Jesus diz: “Se queres entrar para a Vida, guarda os mandamentos”. E cita ao seu interlocutor os preceitos que se referem ao amor do próximo: “Não matarás, não adulterarás, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honra pai e mãe”. Finalmente, Jesus resume estes mandamentos de maneira positiva: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 19,16-19).
  A esta primeira resposta é acrescentada uma segunda: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). Esta não anula a primeira. O seguimento de Jesus Cristo inclui o cumprimento dos mandamentos. A Lei não foi abolida, mas o home é convidado a reencontrá-la na pessoa de seu Mestre, que é o cumprimento perfeito dela. Nos três Evangelhos sinóticos, o apelo de Jesus dirigido ao jovem rico, de seguí-lo na obediência do discípulo e na observância dos preceitos, é relacionado com o convite à pobreza e a castidade. Os conselhos evangélicos são indissociáveis dos mandamentos.
  Jesus, com efeito, retomou os Dez Mandamentos, mas manifestou a força do Espírito em ação na letra deles. Pregou a “justiça que supera a todos escribas e fariseus” (Mt 5,20), como também a dos pagãos. Desenvolveu todas as exigências dos mandamentos. “Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘não matarás’... Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encolerizar contra seu irmão terá de responder no tribunal” (Mt 5,21-22).
  Quando lhe é feita a pergunta: “Qual é o maior mandamento da lei” (Mt 22,36), Jesus responde: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento.


Santidade de Deus                                                                                                                                          92

 Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda lei e os profetas” (Mt 22,37-40). O Decálogo deve ser interpretado à luz desse duplo e único mandamento da caridade, plenitude da lei:

   Os preceitos – não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e todos os outros – se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da lei (Rm 13,9-10).

O DECÁLOGO NA SAGRADA ESCRITURA

  A palavra “Decálogo” significa literalmente “dez palavras” (Ex 34,28; Dt 4,13; 10,4). Deus revelou essas “dez palavras” ao seu povo no monte sagrado. Ele as escreveu “com seu dedo” (Ex 31,18; Dt 5,22), à diferença de outros preceitos escritos por Moisés. São palavras de Deus de modo eminente. Foram transmitidas no livro do Êxodo e no Deuteronômio. Desde o Antigo Testamento, os livros sagrados se referem às “dez palavras”. Mas é em Jesus Cristo, na nova aliança, que será revelado seu sentido pleno.
  O Decálogo deve ser entendido em primeiro lugar no contexto do êxodo, que é o grande acontecimento libertador de Deus no centro da Antiga Aliança. Formulados como preceitos negativos, como proibições, ou como mandamentos positivos (como: “Honra teu pai e tua mãe”), as “dez palavras” indicam as condições de uma vida liberta da escravidão do pecado. O Decálogo é um caminho de vida:

   Se amares teu Deus, se andares em seus caminhos, se observares seus mandamentos, suas leis e seus costumes, viverás e te multiplicarás (Dt 30,16).

  Esta força libertadora do Decálogo aparece, por exemplo, no mandamento sobre o descanso do sábado, destinado igualmente aos estrangeiros e aos escravos.:

   Lembrai-vos de que fostes escravos numa terra estrangeira. O Senhor vosso Deus vos fez sair de lá com mão forte e braço estendido (Dt 5,15).


Santidade de Deus                                                                                                                                          93

  As “dez palavras” resumem e proclamam a lei de Deus: “Tais foram as palavras que, em alta voz, o Senhor dirigiu a toda a vossa assembléia no monte, do meio do fogo, em meio as trevas, nuvens e escuridão. Sem nada acrescentar, escreveu-as sobre duas tábuas de pedra e as entregou a mim” (Dt 5,22). Eis por que estas duas tábuas são chamadas “O Testemunho” (Ex 25,16). Pois contêm as cláusulas da aliança entre Deus e seu povo. Essas “tábuas do Testemunho” (Ex 31,18; 32,15; 34,19) devem ser colocadas “na arca” (Ex 25,16; 40,1-2).
  As “dez palavras” são pronunciadas por Deus no contexto de uma teofania (“sobre a montanha, no meio do fogo, o Senhor vos falou face a face”: Dt 5,4). Pertencem à revelação que Deus faz de si mesmo e da sua glória. O dom dos mandamentos e dom do próprio Deus e de sua santa vontade. Ao dar a conhecer as suas vontades, Deus se revela a seu povo.
  O dom dos mandamentos e da Lei Faz parte da Aliança selada por Deus com os seus. Segundo o livro do Êxodo, a revelação das “dez palavras” é dada entre a proposta da Aliança e sua conclusão, depois que o povo se comprometeu a “fazer” tudo o que o Senhor dissera, e a “obedecer” (Ex 24,7). O Decálogo sempre é transmitido depois de se lembrar a Aliança (“O Senhor nosso Deus concluiu conosco uma aliança no Horeb”: Dt 5,2).
  Os mandamentos recebem seu pleno significado no contexto da Aliança. Segundo a escritura, o agir moral do homem adquire todo o seu sentido na Aliança e por ela. A primeira das “dez palavras” lembra o amor primeiro de Deus por seu povo:

   Tendo o homem, por castigo do pecado, decaído do paraíso da liberdade para a escravidão deste mundo, as primeiras palavras do Decálogo, voz primeira dos divinos mandamentos, aludem à liberdade: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2; Dt 5,6).


Santidade de Deus                                                                                                                                          94

  Os mandamentos propriamente ditos vêm em segundo lugar; exprimem as implicações da pertença a Deus, instituída pela Aliança. A existência moral é resposta à iniciativa amorosa do Senhor. É reconhecimento, submissão a Deus e culto de ação de graças. É cooperação com o plano que Deus persegue na história.
  A Aliança e o diálogo entre Deus e o homem são ainda confirmados pelo fato de que todas as obrigações são enunciadas na primeira pessoa (“Eu sou o Senhor...”) e dirigidas a um outro sujeito (“tu...”). Em todos os mandamentos de Deus, é um pronome pessoal singular que designa o destinatário. Deus dá a conhecer sua vontade a cada um em particular ao mesmo tempo em que o faz ao povo inteiro:

   O Senhor prescreveu o amor para com Deus e ensinou a justiça para com o próximo, a fim de que o homem não fosse nem injusto nem indigno de Deus. Assim,, pelo Decálogo, Deus preparou o homem para se tornar seu amigo e ter um só coração para com o próximo... Da mesma maneira, as palavras do Decálogo continuam válidas entre nós [cristãos]. Longe de serem abolidas, elas foram levadas à plenitude do próprio significado e desenvolvimento pelo fato da vinda do Senhor na carne.

O DECÁLOGO NA TRADIÇÃO DA IGREJA

  Fiel à Escritura e de acordo com o exemplo de Jesus, a Tradição da Igreja reconheceu ao Decálogo uma importância e um significado primordiais.
  Desde Santo Agostinho, os “dez mandamentos” têm um lugar preponderante na catequese dos futuros batizados e dos fiéis. No século XV adotou-se o costume de exprimir os preceitos do Decálogo em fórmulas rimadas, fáceis de memorizar, e positivas. Ainda estão em uso hoje. Os catecismos da Igreja com freqüência têm exposto a moral cristã seguindo a ordem dos “dez mandamentos”.
 
A divisão e a numeração dos mandamentos têm variado no decorrer da história. O presente catecismo segue a divisão dos mandamentos estabelecida por Santo Agostinho e que se tornou tradicional na Igreja católica. É também a das confissões luterana. Os Padres gregos fizeram uma divisão um tanto diferente, que se encontra nas Igrejas ortodoxas e nas comunidades reformadas.


Santidade de Deus                                                                                                                                          95

  Os dez mandamentos enunciam as exigências do amor de Deus e do próximo. Os três primeiros se referem mais ao amor de Deus, e os outros sete ao amor do próximo.

   Como a caridade abrange dois preceitos com os quais o Senhor relaciona toda a Lei e os Profetas(...) assim os próprios dez preceitos estão divididos em duas tábuas. Três foram escritos numa tábua e sete na outra.

  O Concílio de Trento ensina que os dez mandamentos obrigam os cristãos, e que o homem justificado ainda está obrigado a observá-los. E o Concílio Vaticano II afirma: “Como sucessores dos Apóstolos, os bispos recebem do Senhor(...) a missão de ensinar a todos os povos e pregar o Evangelho a toda criatura, afim de que os homens todos, pela fé, pelo Batismo e pelo cumprimento dos mandamentos, alcancem a salvação”.

A UNIDADE DO DECÁLOGO

  O Decálogo forma um todo inseparável. Cada “palavra” remete a cada uma das outras e a todas; elas se condicionam reciprocamente. As duas tábuas se esclarecem mutuamente; formam uma unidade orgânica. Transgredir um mandamento é infringir todos os outros. Não se pode honrar os outros sem bendizer a Deus, seu criador. Não se pode adorar a Deus sem amar a todos os homens, suas criaturas. O Decálogo unifica a vida teologal e a vida social do homem.

O DECÁLOGO E A LEI NATURAL

  Os dez mandamentos pertencem à revelação de Deus. Ao mesmo tempo revelam-nos a verdadeira humanidade do homem. Iluminam os deveres essenciais e portanto, indiretamente, os deveres fundamentais, inerentes à natureza da pessoa humana. O Decálogo contém uma expressão privilegiada da “lei natural”:


Santidade de Deus                                                                                                                                          96

   Desde o começo Deus enraizara no coração dos homens os preceitos da lei natural. Inicialmente ele se contentou em lhos recordar. Foi o Decálogo.

  Embora acessíveis à razão, os preceitos do Decálogo foram revelados. Para chegar a um conhecimento completo e certo das exigências da lei natural, a humanidade pecadora tinha necessidade desta revelação:

   Uma explicação completa dos mandamentos do Decálogo se tornou necessária no estado de pecado por causa do obscurecimento da luz da razão e do desvio da vontade.

  Conhecemos os mandamentos de |Deus pela Revelação divina que nos é proposta na Igreja e através da consciência moral.

A OBRIGATORIEDADE DO DECÁLOGO

  Visto que exprimem os deveres fundamentais do homem para com Deus e para com o próximo, os dez mandamentos revelam, em seu conteúdo primordial, obrigações graves. São essencialmente imutáveis, e sua obrigação vale sempre e em toda parte. Ninguém pode dispensar-se deles. Os dez mandamentos estão gravados por Deus no coração do ser humano.
  A obediência aos mandamentos implica ainda obrigações cuja matéria é, em si mesma, leve. Assim, a injuria por palavra está proibida no quinto mandamento, mas só poderia ser falta grave em função das circunstâncias ou da intenção daquele que a profere.

“SEM MIM, NADA PODEIS FAZER”

  Jesus diz: “Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,5). O fruto evocado nesta palavra é a santidade de uma vida fecunda pela união a Cristo.


Santidade de Deus                                                                                                                                          97

 Quando cremos em Jesus Cristo, comungamos de seus mistérios e guardamos seus mandamentos, o Salvador mesmo vem amar em nós em seu Pai e seus irmãos, nosso Pai e nossos irmãos. Sua pessoa se torna, graças ao Espírito, a regra viva e interior de nosso agir. “Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jô 15,12).

RESUMINDO

   “Que  devo fazer de bom para ter a vida eterna?” – “Se queres entrar para a vida , guarda os mandamentos” (Mt 19,16-17).
   Por sua prática e por sua pregação, Jesus atestou a perenidade do Decálogo
   O dom do Decálogo é concedido no contexto da Aliança celebrada por Deus com seu povo. Os mandamentos de Deus recebem seu verdadeiro significado nessa Aliança e através dela.
   Fiel à escritura, e de acordo com o exemplo de Jesus, a Tradição da Igreja reconheceu ao Decálogo uma importância e um significado primordiais.
   O Decálogo forma uma unidade orgânica, em que cada “palavra” ou “mandamento” remete a todo o conjunto. Transgredir um mandamento é infringir toda a Lei.
   O Decálogo contém uma expressão privilegiada da lei natural. Conhecemo-lo pela revelação divina e pela razão humana.
   Os Dez Mandamentos enunciam, em seu conteúdo fundamental, obrigações graves. Todavia a obediência a esses preceitos implica também obrigações cuja matéria é, em si mesma, leve.
   O que Deus manda, torna-o possível pela sua graça.

_______________________________________________________________


(Ó meu Deus! bem-aventurada Trindade, desejo amar-vos e fazer que vos amem, trabalhar pela glorificação da Santa Igreja, salvando as almas que estão na terra, e libertando as que sofrem no Purgatório. Desejo cumprir, perfeitamente, vossa vontade e alcançar o grau de glória que me preparastes em vosso Reino. Numa palavra, desejo ser santa, mas sinto minha insuficiência, e peço-vos, ó meu Deus, sede Vós mesmo a minha santidade. (Santa Terezinha do Menino Jesus)).




Transcrito de: As Maravilhas do Padre Donizete (Dom Dadeus Grings) e Catecismo da Igreja Católica (Papa João Paulo II)


Nenhum comentário:

Postar um comentário